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quarta-feira, agosto 29, 2007

Carta Aberta a Charles Darwin


Hélder Costa, dramaturgo e encenador de “A Barraca”

“Hesitei imenso em lhe escrever pois receio que lhe vá causar preocupações que possam agravar as suas enxaquecas e outro males físicos. Mas recordando a tenacidade intelectual com que defendeu as suas descobertas contra a ignorância reinante, achei que não merecia o silêncio com que se ocultam notícias desagradáveis a fraca gente.
Meu caro Darwin, o seu nome está na moda! Hoje, a paz no mundo está ameaçada pela agressão belicista à escala mundial por parte dos Estados Unidos da América. É verdade, meu caro Darwin, são os descendentes do Mayflower... quem diria? Mas há um dado novo: as armas, os satélites espiões, o napalm, a corrupção de Estados lacaios, a tortura, a droga, o gaz mortífero, tudo isso se revela insuficiente como provam as derrotas do Exército USA um pouco por toda a parte.
Então o que é necessário? Atacar as ideias, destruir os avanços da civilização, restaurar a boçalidade e o primitivismo, apostar na ignorância, no misticismo, no esoterismo. Para, mais facilmente, se manipular o povo-marionete. E é aqui que a sua teoria da evolução das espécies é combatida com o renascer da teoria do criacionismo. É verdade, meu caro Darwin! No seu tempo teve de se demitir da Sociedade Britânica de Geologia porque os seus colegas cientistas eram da Igreja Angelicana e acreditavam piamente na Bíblia e a Sociedade Linneana considerou o seu estudo e também o de Wallace sem algum interesse científico, mas a sua ideia fez o seu caminho e triunfou.

<Francisco Goya y Lucientes: o Macaco pinta o retrato ao Burro dando-lhe ares de Leão

No fim do século XIX Engels escreveu um pequeno texto fascinante – “O papel do trabalho na transformação do macaco em homem” – onde provava que o esforço de procurar alimentação ou a necessidade de defesa iam criando adaptações à mão, o que demonstrava que o trabalho era o verdadeiro motor do desenvolvimento. E foi com trabalho, com a observação, o empirismo, que os nossos antepassados primitivos descobriram a arte de semear e cultivar, o movimento das marés, da lua, inventaram o calendário, o dia, o mês, o ano, e mais investigação e mais estudo desenvolveram a Ciência, e assim reinventaram a vida. Os milhares de estudos que acabaram por provar que os seres vivos existiam devido a mudanças, transmutações, evoluções, e tudo tinha sido criado por fenómenos físicos, materiais, foram miraculosamente enterrados na poeira do tempo e substituidos por um acto misterioso, inacessivel, não comprovável, de um Deus desconhecido.

A ofensiva é grave, caricatural, disparatada, mas faz o seu caminho: nos EUA o criacionismo tem a sua praça forte em terras da Ku-Klux-Klan, é estudado nas Universidades, em vários Estados Darwin é proibido – assim como na Polónia e outras tentativas na Alemanha – abriram um “Museu” (um sítio onde se assiste ao vivo a aparições) em que Adão e Eva vivem com dinossauros (!), e defendem que a criação do mundo é ipsis verbis a narração do Génesis!
Para perceber a importância desta ofensiva contra o conhecimento e esclarecimento, talvez seja bom recordar o incêndio da biblioteca de Alexandria que provocou o retrocesso científico e cultural talvez de milhares de anos, o novo ataque, na Idade Média, da Inquisição e do radicalismo islâmico contra os ventos do progresso e do Iluminismo, e etc. etc. Hoje, com a descoberta do ADN e viagens interplanetárias surge – dir-se-ia oportunamente – o Criacionismo mais boçal!
Meu caro Darwin, deixe-me dedicar umas palavras a Emma, a sua querida mulher e companheira de luta que sempre defendeu o direito a ser religiosa, ao contrário do seu agnosticismo. Emma, note que este ataque da Religião contra a Ciência está a ser sublinhado com uma nova linha radical da Igreja Católica. O bispo Ratzinger, tristemente célebre por ter interrogado Leonardo Boff, da Teologia da Libertação, sentando-o na mesma cadeira onde Galileu tinha sido interrogado, é hoje o Papa Bento16. Criticou o criacionismo ipsi verbis, mas defendeu a existência de outras teorias além da de Darwin porque não era verificável, o latim volta a ser utilizado nas missas, e acabou de declarar que o catolicismo é a única religião verdadeira combatendo o ecumenismo religioso!
Felizmente, queridos Emma e Darwin, estas ofensivas contra a inteligência não estão a triunfar. Na esteira de Darwin e milhares de outros, muitos foram alertados e compreenderam que o TRABALHO actual é, mais do que nunca, esclarecer, discutir, polemizar, impedir o renascimento do obscurantismo. Para prevenir a Paz, ao contrário de prevenir a Guerra, basta saber que a IDEIA é mais importante que qualquer Arma.
Beijo-vos afectivamente”.

(texto publicado no Jornal de Letras, nº960 de 18 Julho/07)

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