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domingo, maio 12, 2013

Karl Marx deveria estar morto e enterrado?

Com o colapso da União Soviética e o que dizem ter sido o “grande salto em frente” da China para o capitalismo, o comunismo desapareceu no cenário pitoresco dos filmes de James Bond. A luta de classes que Marx acreditava ter determinado o curso da história parecia ter-se dissolvido numa era de prosperidade do livre comércio e da livre iniciativa. O poder de longo alcance da globalização, que liga os cantos mais remotos do planeta pela via dos aparentemente lucrativos títulos financeiros, a terceirização da economia e a produção "sem fronteiras", oferecidas desde os gurus das tecnologias do Vale do Silicio até às meninas das explorações agrícolas chinesas, tem proporcionado a todos amplas oportunidades para ficarem ricos.

A Ásia nas últimas décadas do século 20 testemunhou talvez o registo mais marcante de redução da pobreza na história humana - tudo graças à produção em massa centralizada no Estado virada para o comércio capitalista, empreendedorismo, investimento e atracção de capital estrangeiro. O capitalismo parecia estar a cumprir a sua promessa - para elevar todos a novos patamares de riqueza e bem-estar. Ou então pensamos - com a economia global numa crise prolongada, e os trabalhadores de todo o mundo atingidos pelo desemprego, pelas dívidas da burguesia e pelos rendimentos estagnados, a crítica mordaz de Marx ao capitalismo - que o sistema é inerentemente injusto e auto-destrutivo - não pode ser tão facilmente descartada. Marx teorizou que o sistema capitalista, inevitavelmente, iria empobrecer as massas à medida que a riqueza do mundo se fosse concentrando nas mãos de uns poucos gananciosos, causando crises económicas e conflitos de elevada intensidade entre as classes ricas e as classes trabalhadoras. "A acumulação de riqueza num pólo é, ao mesmo tempo, acumulação de miséria, agonia das formas de luta, escravidão, ignorância, brutalidade, degradação mental, no pólo oposto", escreveu Marx. Um dossier crescente de evidências tem mostrado à saciedade que ele estava cheio de razão. É, infelizmente, muito fácil encontrar estatísticas que mostram que os ricos estão cada vez mais ricos, enquanto a classe média e os pobres não conseguem o mínimo decente para sobreviver. Um estudo de Setembro último do Economic Policy Institute (EPI) de Washington constata que o salário médio anual de um trabalhador do sexo masculino a tempo integral nos EUA em 2011 era de 48 202 dólares americanos, um rendimento menor que em 1973. Entre 1983 e 2010, 74% dos ganhos da riqueza total nos EUA foram para os 5% mais ricos, enquanto 60% sofreram um declínio. Ninguém fica admirado, portanto, por muita gente continuar a dirigir um segundo olhar à teoria do filósofo alemão do século XIX.


Na China, o país marxista que aparentemente virou as costas a Marx, Yu Rongjun inspirou-se nestes eventos globais para escrever um musical baseado no clássico “Das Kapital” de Marx. "Aqui você pode encontrar a realidade corresponde ao que está descrito no livro", diz o dramaturgo, excepto a “ditadura do proletariado que não funcionou conforme previsto. Mas a consequência do alargamento dessa desigualdade é exactamente o que Marx havia previsto: a luta de classes está de volta. Entre os trabalhadores do mundo inteiro crescem as tomadas de consciência e a vontade de revolta pela exigência da sua justa parte na economia global. Das decisões do Congresso dos EUA para as ruas de Atenas, ou para as linhas de montagem do sul da China, eventos políticos e económicos estão sendo moldados por tensões crescentes entre o capital e o trabalho num grau jamais visto desde as revoluções comunistas do século 20. O modo como essa luta se desenrolar vai influenciar os rumos da política económica global, o futuro do Estado social, a estabilidade política na China, e de todos os que governam a partir de Washington a Roma. O que quer Marx dizer hoje? - "Alguma variação de um: "eu te avisei ", diz Richard Wolff, um economista marxista na New School de Nova York. "A diferença de rendimentos produz um nível de tensão que nós nunca tínhamos visto na nossa vida."

As tensões entre as classes económicas nos EUA estão claramente em ascensão. A sociedade tem sido percebida como a divisão entre os "99%" (a maioria da população lutando para sobreviver) e o "1%" (o privilegiados super-ricos interconectados com o sistema ficando mais ricos a cada dia). Numa sondagem do Pew Research Center divulgada no ano passado, dois terços dos entrevistados acreditavam que os EUA sofrem um conflito "forte" ou "muito forte" entre ricos e pobres, um aumento significativo de 19 pontos percentuais em relação a 2009, classificando o assunto como ponto nº1 na divisão da sociedade. Este clima de elevada tensão domina a politica norte-americana. A batalha partidária sobre como corrigir o déficite orçamental do país tem sido, em grande medida, a luta de classes. Sempre que o presidente Barack Obama fala de aumentar os impostos sobre os americanos mais ricos para baixar o déficite, os conservadores gritam que ele está a lançar uma "ditadura de classe" contra os ricos. No entanto, os republicanos estão envolvidos em alguma forma de luta de classe no seio do seu próprio partido. O plano do Partido Republicano para a estabilização fiscal efectivamente lança o peso do ajuste financeiro para o meio das classes económicas mais pobres por meio de cortes nos serviços sociais. Obama baseou grande parte de sua campanha de reeleição em caracterizar os republicanos como insensíveis às classes trabalhadoras. O candidato Mitt Romney, só tinha um "plano de um ponto" para a economia dos EUA - "para se certificar de que as pessoas no topo jogam segundo um conjunto diferente de regras". No meio da retórica, no entanto, há sinais de que este novo classicismo americano mudou o debate sobre a política económica do país. A economia “trickle-down” neoliberal, que insiste em que o sucesso do 1% dos mais ricos vai beneficiar os 99% mais pobres, está sob escrutínio intenso. David Madland, director do Centro para o Progresso Americano, um think tank com sede em Washington, acredita que a campanha presidencial de 2012 trouxe um foco renovado em reconstruir a classe média. "Eu sinto uma mudança fundamental ocorrendo", disse ele.


A ferocidade da nova luta de classes é ainda mais pronunciada na França. Em Maio passado, quando a dor de cabeça da crise financeira e dos cortes no orçamento feitos indiscriminadamente a ricos e pobres, houve muitos cidadãos comuns que votaram no Partido Socialista de François Hollande por causa da sua proclamação: "Eu não gosto dos ricos". Revelou-se fiel à sua palavra? A chave para a sua vitória foi a promessa de campanha que iria extrair mais impostos dos ricos para manter o Estado de Bem-Estar da França. Para evitar os cortes de gastos drásticos que outros reformuladores de políticas na Europa têm seguido, Hollande tinha planeado aumentar a taxa de IRS 75%. Contudo essa ideia foi inviabilizada pelo Conselho Constitucional do país. Hollande entretanto trama maneiras de introduzir uma medida similar. Ao mesmo tempo, tem se esconder do homem comum por detrás do governo. O presidente reverteu uma decisão impopular do seu antecessor para aumentar a idade de reforma em França, baixando-a de volta à lei dos 60 anos para alguns trabalhadores. Mas quer ir ainda mais longe. "A proposta de imposto de Hollande tem que ser o primeiro passo para a reforma integral do capitalismo, reconhecendo o governo que o sistema na sua forma actual tornou-se tão injusto e disfuncional que corre o risco de implodir sem se ter tido tempo de efectuar nenhuma reforma profunda. Estas tácticas, no entanto, estão a provocar uma reação da classe capitalista. Mao Tsé Tung poderia ter insistido que "o poder político nasce do cano das espingardas", mas num mundo onde “o capital” tem cada vez mais mobilidade, as armas da luta de classes mudaram para uma maior sofisticação. Ao invés de pagar para tentar comprar Hollande, (como é uso fazer com os governantes nos países periféricos) alguns dos ricos da França saem para fora do país. Contrariando a necessidade de empregos e com eles de investimentos, Jean-Émile Rosenblum, fundador da Pixmania, um retalhista on-line, dedica-se à criação da sua vida: um novo empreendimento nos Estados Unidos onde ele vê um clima muito mais hospitaleiro para os empresários. "O aumento do conflito de classes é uma consequência normal de qualquer crise económica, mas a exploração política de que tem sido alvo na Europa é demagógica e discriminatória", diz Rosenblum. "Em vez de depender de (empresários) para criar empresas e empregos de que nós precisamos, a França está a persegui-los"

A luta entre ricos e pobres é talvez mais volátil na China. Ironicamente, Obama e o recém-chegado presidente da China comunista, Xi Jinping, enfrentam o mesmo desafio. O intensificar a luta de classes não é apenas um fenómeno de crescimento lento no mundo industrializado endividado. Mesmo em rápida expansão dos mercados emergentes, a tensão entre ricos e pobres, converteu-se na principal preocupação para os decisores políticos. Ao contrário do que muitos descontentes americanos e europeus acreditam, a China não tem sido um paraíso para os trabalhadores industriais intensivos saídos do atraso secular dos campos. A "tigela de arroz de ferro" - a prática da era de Mao de garantir empregos para a vida dos trabalhadores - desapareceu com o maoísmo, e desde o inicio do período das reformas, os trabalhadores tinham poucos direitos, uma vez que o Estado e Serviços Sociais se consideram propriedade de todos. Mesmo que a renda do trabalho nas cidades da China esteja crescendo substancialmente, o fosso entre ricos e pobres é muito grande. Outro estudo do Pew Institute revelou que quase a metade dos chineses entrevistados consideram os ricos e pobres um problema muito grande, enquanto que 8 em cada 10 concordaram com a proposição de que os "ricos apenas ficam mais ricos, enquanto os pobres ficam mais pobres" na China.

O ressentimento está a chegar a um ponto de ebulição nas cidades industriais da China. "As pessoas vêm de fora aspirando ter vidas de maior abundância, mas a vida real nas fábricas e na construção é muito diferente", diz o operário Peng Ming no enclave industrial de Shenzhen. Enfrentando longas horas de trabalho, aumento dos custos, gerências indiferentes e muitas vezes atraso nos pagamentos. Os antigos trabalhadores agrícolas começam a adquirir hábitos e reivindicações de um verdadeiro proletariado. "A forma como o rico obtém o dinheiro é através da exploração dos trabalhadores", diz Guan Guohau, outro empregado da fábrica de Shenzhen. "O comunismo é o que nós precisamos para andar para a frente." A menos que o governo tome maiores acções para melhorar seu bem-estar, dizem eles, os trabalhadores vão se tornar mais e mais dispostos a tomar medidas próprias. "Os trabalhadores vão organizar-se (…) todos os trabalhadores devem estar unidos". Pode já estar a acontecer. O acompanhamento do nível de agitação laboral na China é difícil, mas os especialistas acreditam que tem vindo a aumentar. Uma nova geração de operários - mais bem informados do que os seus pais, graças à Internet - tornou-se mais franco nas suas exigências por melhores salários e condições de trabalho equiparaveis aos paises desenvolvidos. Até agora, a resposta do governo tem sido mista. Os decisores políticos têm aumentado os salários mínimos para aumentar o rendimento, endurecer as leis laborais para dar aos trabalhadores mais protecção. Mas o governo ainda desestimula o activismo trabalhador independente, muitas vezes pela força. O governo pensa mais sobre as empresas do que nós" conclui Guan Guohau.


Na antiga Europa industrializada, Marx teria previsto apenas um resultado. Como o proletariado acordou para os seus interesses de classe comuns, eles iriam inevitavelmente derrubar um sistema capitalista injusto e corrupto e substituí-lo pelo novo sistema socialista. Os comunistas "declaram abertamente que seus objectivos só podem ser alcançados pelo derrube violento de toda a ordem social existente", escreveu Marx. "Os proletários nada têm a perder a não ser suas correntes esclavagistas". Há sinais de que os trabalhadores dde todo o mundo estão cada vez mais impacientes com as suas fracas perspectivas. Centenas de milhares de pessoas tomaram as ruas de cidades como Madrid e Atenas, em protesto contra um desemprego estratosférico e as medidas de austeridade que estão a tornar as coisas ainda piores. Até agora, porém, na Europa a revolução de Marx ainda não se materializou. Os trabalhadores podem ter problemas comuns, mas eles não se estão unindo para resolvê-los.

A adesão à união nos EUA, por exemplo, continuou a diminuir durante a crise económica, enquanto que o movimento Occupy Wall Street fracassou. Os manifestantes, diz Jacques Rancière, um especialista em marxismo na Universidade de Paris, não têm como objetivo substituir o capitalismo, como Marx havia previsto, mas apenas para reformá-lo. "Não estamos dando aulas em protestos que pedem o derrube ou a destruição de sistemas socio económicos para colocar outro diferente no seu lugar", explica. "O conflito de classes que se está produzindo hoje são chamadas para consertar os sistemas para que se torne mais viável e sustentável para o longo prazo, redistribuindo a riqueza criada." Apesar de tais chamadas, no entanto, a actual política económica das indústrias livremente deslocalizadas continua a alimentar as tensões de classe. Na China e nos Estados Unidos , o alto funcionalismo decide pagar artificialmente o sector de serviços para reduzir o fosso dos rendimentos, mas, na prática, esquivam-se às reformas urgentes (combate à corrupção, fim do monopólio do sector financeiro privado) que poderia fazer inverter o curso dos acontecimentos. Os governos subservientes da Europa que se estão a deixar sobrecarregar de dívidas por meio da especulação, reduziram os programas de bem-estar, mesmo quando o desemprego aumentou e o crescimento caiu. Na maioria dos casos, a solução escolhida para a reparação do capitalismo tem sido mais capitalismo. Os bonzos formuladores de políticas em Roma, Madrid, Lisboa e Atenas cumprem um programa de desmantelamento das leis de protecção dos trabalhadores, pressionados pelos detentores do poder de decisão internacional a desregulamentar ainda mais os mercados domésticos para que estes se possam converter em coutadas exclusivas das multinacionais de accionistas que se escondem por detrás desses mesmos decisores.


Owen Jones, o autor britânico de “Chavs: a Demonização da Classe Trabalhadora”, chama a isso "uma guerra de classes ordenada a partir de cima". Muito poucos irão permanecer no meio, no lugar da antiga classe média, muitos irão ficar pelo caminho. O surgimento de um mercado de trabalho global livre a desregulado, sindicatos em todo o mundo desenvolvido desarmados por subsídios estatais, a esquerda política arrastada para a direita desde o ataque do livre mercado de Margharet Thatcher e Ronald Reagan, não criaram um percurso alternativo credível. "Praticamente todos os partidos progressistas ou de esquerda contribuíram em algum momento para a ascensão e chegada dos mercados financeiros, correndo atrás dos prejuízos no sistema de protecção social para ingloriamente tentar provar que são capazes de reformas. Observa Rancière; "eu diria que as perspectivas de trabalho dos partidos socialistas ou os governos dessa área em qualquer lugar do espectro politico não podem reconfigurar significativamente - muito menos virar – os sistemas económicos actuais por serem muito fracos". Isto deixa em aberto uma possibilidade assustadora: a de que Marx não só diagnosticou falhas do capitalismo, mas também previu o resultado dessas falhas. Se os políticos não descobrem novos métodos de garantir oportunidades económicas, os trabalhadores de todo o mundo podem muito bem unir-se. Marx pode então ainda ter a sua vingança
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