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terça-feira, outubro 20, 2009

Saramago...

Novembro de 2008


... e a Loucura

Samuel Clemens era um daqueles homens do novo mundo, dos que se esforçavam por sete ofícios para ganhar o sustento e a compreensão da sociedade em que se integravam. Num desses ofícios precários arranjados nas barcaças de transporte do rio Mississipi usava-se um dito para evitar que os homens ficassem encalhados na labuta; Diziam: põe sempre os olhos “duas braças abaixo” para veres a profundidade do rio - traduzindo a frase “mark twain” – e foi esse o pseudónimo usado para assinar algumas das obras mais fundamentais do cânone ocidental, entre elas “O Pregador da Guerra” (Mark Twain, "The War Prayer", 1905):

“Todas as noites multidões compactas se reuniam para ouvir e emocionar-se com a oratória patriótica, que mexia com as profundezas dos seus corações, cortada por breves intervalos de aplausos ciclónicos, as lágrimas rolando pela face; nas igrejas os Padres pregavam a devoção à Bandeira e ao País, e invocavam o Deus das Batalhas, implorando a sua ajuda na nobre causa num derramamento de fervorosa eloquência, que comovia todo e qualquer ouvinte” (Vemos a cena, embora na época ainda não existisse o efeito ampliado pela televisão). Foi verdadeiramente uma época feliz e generosa, e a meia dúzia de espíritos imprudentes que se arriscaram a desaprovar a guerra e a questionar a sua legitimidade receberam imediatamente um aviso sério e furioso de que para o seu próprio bem desaparecessem da nossa vista e nunca mais fizessem algo tão absurdo. (1)














Foi lido um capítulo de guerra do Velho Testamento
; “Deus todo-poderoso! Vós que tudo dominais! O Trovão é o vosso clarim e o relâmpago a vossa espada!”. Com os olhos fechados o Pregador, em tal transe que já nem se apercebia da sua presença, continuou com a sua comovente prece, e no final rematou com estas palavras num apelo fervoroso: “Abençoai as nossas armas, dai-nos a vitória, ó Senhor nosso Deus, Pai e Protector da nossa Terra e da nossa Bandeira! Sobre o acolhedor espírito de Deus caiu também a parte não proferida da prece. Ele me incumbiu de a pôr em palavras. Ouçam!: Ó Senhor nosso Pai, nossos jovens patriotas, ídolos dos nossos corações, avancem para a batalha – estejais Vós perto deles! Com eles – em espírito – também nós avançamos da doce paz de nossos amados lares para atacar o inimigo.

Ó Senhor nosso Deus, ajudai-nos a fazer dos soldados deles pedaços sangrentos de corpos graças às nossas bombas; ajudai-nos a cobrir seus alegres campos com as pálidas formas de seus patriotas mortos; ajudai-nos a sufocar o trovejar das armas com os gritos dos seus feridos contorcendo-se de dor; ajudai-nos a arrasar seus lares humildes com um furacão de fogo; ajudai-nos a esmagar os corações de suas viúvas inocentes com irremediável pesar; ajudai-nos a torná-los desabrigados com criancinhas solitárias a vagar pelos restos de sua desolada terra em farrapos, com fome e com sede, à mercê do sol flamejante de verão e dos ventos gelados do inverno, desolados, acabados pelo trabalho duro, implorando-vos a Vós pelo refúgio do túmulo e não sendo atendidos.

Por nós, que Vos adoramos, Senhor, arrasai as suas esperanças, deteriorai suas vidas, prolongai a sua amarga peregrinação, fazei pesados os seus passos, molhai o seu caminho com suas lágrimas, manchai a neve alva com o sangue dos seus pés feridos! Isto nós pedimos, no espírito do amor, d’Ele que é a Fonte do Amor, e que é o sempre fiel refúgio e amigo de todos os que estão aflitos e sofrendo buscam a Sua ajuda, de corações humildes e contrictos. Amén. (e após uma pausa) “Vocês assim rogaram. Se ainda desejam isto, falem! O mensageiro do Mais Alto aguarda!

Muito tempo depois, acredita-se que aquele homem era apenas um doido, porque as suas palavras não faziam qualquer sentido”. Porém, naquele momento, a acção necessária para a defesa de interesses que a declaração de guerra propicia, tinha sido iniciada. E por falar em Antigo Testamento, o Estado religioso de Israel actualmente fornece ilustrações “mais que concludentes” para as palavras postas por Mark Twain na boca de um louco

(1) o poster é de João Abel Manta sobre a Guerra Colonial. Existem em muitos milhares de portugueses recordações bem vivas sobre o papel dos Padres que eram enviados junto com os batalhões que iam combater "terroristas"
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