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quinta-feira, março 22, 2007

O Império da Vergonha

Rodrigues da Silva no JL,

Ainda há socialistas dignos desse honrado nome. Jean Ziegler (n.Berna 1934) é um deles, e se, assim de repente, não o identificam, esclareça-se que se trata do autor de dois livros de referência, ambos, felizmente, traduzidos entre nós: “A Suiça Lava Mais Branco” (1990) e “A Suiça, O Ouro e Os Mortos” (1997). Dois titulos de uma eloquência arrasadora para o país natal de Ziegler, ao nível de alguns dos filmes desse outro suiço de boa cepa, o cineasta Alain Tanner. Mas Ziegler (que estudou Economia, Sociologia e Ciências Politicas, na Suiça, em França e nos Estados Unidos, possui vastos conhecimentos de História e foi professor de várias Universidades europeias) já antes de 1990 publicara “A Contra Revolução em África” (1963), a que se seguiram mais três ensaios sobre aquele continente e dois outros de títulos promonitórios: “Contra a Ordem do Mundo”; “Os Rebeldes” (1983) e “A Vitória dos Vencidos: Opressão e Resistência Cultural” (1988).

Disse de titulos promonitórios porque quero chamar aqui a atenção para o último livro de Ziegler, acabado de sair em Portugal, “O Império da Vergonha” – um fabuloso ensaio sobre aquilo que ele apelida de a “refeudalização do mundo”, realidade a partir da qual cria um conceito: os cosmocratas. E quem são estes cosmocratas que refeudalizaram o mundo? Ziegler explica: são os senhores que, a pouco e pouco, tudo privatizam, inclusivé a própria água (por enquanto ainda não o ar), que depois os povos terão de lhes pagar. Trocada a coisa por miúdos, diga-se que para Ziegler os cosmocratas servem-se da dívida e da fome para conseguirem impor um regime (até agora inédito) de submissão dos povos aos interesses das grandes companhias privadas. É que, pela dívida, os Estados abdicam da sua soberania, e, pela fome, os povos agonizam e renunciam à sua liberdade. Os grandes empórios transcontinentais partilham entre si as riquezas do Hemisfério Sul, apoiados quer nuns Estados Unidos que, com Bush, cada vez mais dominam o mundo, quer em instituições como o Banco Mundial, o FMI, a União Mundial do Comércio e a própria UE que impõem politicas suicidárias aos paises individados. Paises sujeitos, por um lado, à tirania de politicos locais vendidos e corruptos. Como o comprova o número crescente (100 milhões mais em apenas dez anos) de seres humanos que sobrevivem com menos de um dólar por dia.

Esta súmula não resulta de um pensamento teórico, porque Ziegler, que em tempos foi deputado do Partido Socialista Suiço, e há uma década funcionário da ONU, como relator especial da Comissão de Direitos do Homem sobre o Direito à Alimentação. E, nesta qualidade, tem corrido o mundo, ou mais exactamente, aqueles paises que se defrontam com a fome. “O Império da Vergonha” reflecte-o, porque Ziegler assume-se nele como testemunha. Ou como repórter – todo o seu ensaio pode ser lido como uma reportagem, aliás muito bem escrita.

E é assim que a realidade de paises como o Brasil (44 milhões de subnutridos crónicos), a Etiópia, o Chile, as Honduras, o Haiti, Marrocos, Tailândia, Ruanda e diversos outros nos é dada a ver por Ziegler. Que igualmente, não se coibe de pôr a nu a politica de algumas grandes transcontinentais (como a Nestlé por exemplo), que enriquecem na razão directa da exploração dos povos mais pobres.
Ziegler não se fica pela denúncia – à beira dos 73 anos, este socialista sartreano, que não enjeitou o marxismo e muito menos a memória dos revolucionários de 1789, proclama ainda a necessidade e a urgência da insurreição. A insurreição das consciências, pela refundação do direito à felicidade! Porque “se não consegue vencer a vergonha, o faminto morre

relacionado:
* "A esquizofrenia das Nações Unidas"
* "Retrato do Banco Mundial"
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