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quarta-feira, agosto 17, 2005


Este mundo de injustiça globalizada
José Saramago
Premio Nobel de Literatura 1998.

Começarei por contar em brevíssimas palavras um feito notável da vida rural ocorrido numa aldeia dos arredores de Florença há mais de quatrocentos anos. Permito-me solicitar toda a vossa atenção para este importante acontecimento histórico porque, ao contrário do habitual, a moral que se pode extrair deste episódio não terá que esperar pelo final do relato; não tardará nada para ela saltar à vista.
Estavam os habitantes nas suas casas ou trabalhando nas suas hortas, entregues cada um aos seus afazeres e cuidados, quando de súbito se ouviu tocar o campanário da igreja.
Naqueles velhos tempos (falamos de algo sucedido no século XVI), os sinos tocavam várias vezes ao longo do día, e não era por aí que haveria estranheza, porém aquele campanário tocava melancólicamente a finados, e isso sím era surpreendente, porque não constava que alguem da aldeia se encontrasse mal ao ponto de morrer. Sairam as mulheres à rua, juntaram-se as crianças, deixaram os homens os seus trabalhos e oficios, e, em pouco tempo estavam todos congregados no largo da igreja, à espera que lhes dissessem por quem haveriam de chorar. Os sinos continuaram a tocar durante alguns minutos mais, e finalmente calaram-se. Instantes depois abríu-se a porta e, um camponês apareceu entre as ombreiras. Porém, não era este o homem encarregado habitualmente de tocar os sinos, e assim era compreensivel que os vizinhos lhe perguntassem onde se encontrava o tocador do campanário e quem era o morto. “O sineiro não está, e fui eu quem fez tocar os sinos”, foi a resposta do camponês.”Mas então não morreu ninguem?” replicaram os vizinhos, e o camponês respondeu ”Não morreu nada que tivesse nome ou figura de pessoa; Toquei a finados pela Justiça!, porque a justiça está morta”

¿Mas, que havia sucedido? Aconteceu que o senhor rico daquele lugar (algum conde ou marquès sem escrúpulos) andava fazia algum tempo mudando de sitio os postes de limite das suas terras, metendo-os adentro na pequena parcela daquele camponês,cuja propriedade a cada avanço cada vez mais se reduzia. Sentindo-se prejudicado ele começou por se queixar e protestar, depois implorou compaixão, e finalmente fêz queixa ás autoridades acolhendo-se sob a protecção da Justiça. Tudo sem resultado; a expoliação continuou. Então, desesperado, decidiu anunciar urbi et orbi (uma aldeia tem o tamanho exacto do mundo para quem viveu sempre nela) a morte da Justiça. Talvez tivesse pensado que o seu gesto de exaltada indignação lograria comover e fazer tocar todos os sinos do universo, sem diferença de raças, credos ou costumes, e que todas elas sem excepção, o acompanhariam no toque a finados pela morte da justiça, e não se calariam até que ela fosse ressuscitada.Num clamor tal que voaria de casa em casa, de cidade em cidade, saltando por cima de fronteiras, lançando sonoras pontes sobre rios e mares, que por força haveriam de despertar o mundo adormecido,,,Não sei o que sucedeu depois,não sei se braço popular acudiu a ajudar o camponês a voltar a colocar os postes nos seus sítios, ou se os vizinhos, uma vez declarada morta a justiça, voltaram resignados, cabisbaixos e de alma rendida, à sua triste vida de todos os dias. É bem certo que a História nunca nos conta tudo,,,

Suponho que esta terá sido a única vez, em qualquer parte do mundo, em que os sinos de um campanário, uns inertes sinos feitos de bronze, depois de tanto tocar pela morte de seres humanos, choraram a morte da Justiça.Nunca mais se voltaram a ouvir aqueles toques fúnebres da aldeia de Florença, mas a Justiça continuou e continua a morrer todos os dias. Agora mesmo, neste instante em que vos falo, distantes ou aqui ao lado, à porta da nossa casa alguém a está matando.
Cada vez que morre, é afinal como se nunca tivesse existido para aqueles que sempre confiaram nela, para aqueles que esperavam dela o que todos temos direito a esperar da justiça: Justiça!, simplesmente justiça. Não a que se envolve nas túnicas dos teatros e nos confunde com floreados de vã retórica judicial, não a que permitiu que lhe vendassem os olhos e alterasse os pesos da balança, não a da espada que corta sempre mais de um lado do que de outro, mas sim uma justiça terrena, uma justiça companheira dos homens, uma justiça para a qual o justo seria o sinónimo mais exacto e rigoroso do ético, uma justiça que chegasse a ser tão indispensável para a vida como o é o alimento para a felicidade do espírito como indispensável para a vida é o alimento para o corpo. Uma justiça exercida pelos tribunais, sem dúvidas, sempre que ela fosse determinada pela Lei, mas também, e sobretudo,uma justiça que fosse a emanação espontânea da própria sociedade em acção, uma justiça em que se manifestasse, como ineludível imperativo moral, o respeito pelo direito que assiste a cada ser humano de o ser.
Porém os sinos, felizmente, não dobravam só para chorar os que morriam. Dobravam tambem para assinalar as horas do dia e da noite, para chamar á festa ou à devoção os crentes, e houve um tempo, neste caso não tão distante, em que o seu toque a rebate convocava o povo para acudir às catástrofes, às inundações e aos incêndios, aos desastres, a qualquer perigo que ameaçasse a comunidade.Hoje, o papel social dos campanários se vê limitado ao cumprimento das obrigações rituais, e o gesto iluminado do nosso camponês de Florença seria visto como obra de um louco desalmado, ou pior ainda, como um simples caso de polícia.
Outros sinos distintos são hoje os que hoje defendem e afirmam, por fim, a possibilidade de implantar no mundo aquele tipo de Justiça solidária dos homens, aquela justiça que é condição para a felicidade do espirito e até, por surpreendente que nos possa parecer, condição para o próprio alimento do corpo. Se houvesse essa justiça, nem um só ser humano morreria mais de fome ou de tantas doenças incuráveis para uns e não para outros. Se houvesse essa justiça, a existência não seria, para mais de metade da humanidade,a condenação terrivel que objectivamente tem sido. Estes novos campanários cuja voz se alarga, cada vez mais forte, por todo o mundo, são os múltiplos movimentos de resistência e de acção social que pugnam pelo estabelecimento de uma nova justiça distributiva e comutativa, que todos os seres humanos possam chegar a reconhecer como sua; uma justiça protegida pela liberdade e pelo direito, e não por nenhuma das suas negações.
E digo que para essa justiça dispomos já de um código de aplicação prática ao alcance de qualquer compreensão, e que esse código se encontra consignado desde há cincoenta anos na Declaração Universal dos Direitos Humanos, naqueles trinta direitos básicos essenciais (dos que hoje só se fala vagamente, quando não se silenciam sistemáticamente), mais desprestigiados e manchados hoje em dia do que estiveram, faz quatrocentos anos, a propriedade e a liberdade do camponês de Florença. E digo tambem que a Declaração Universal dos Direitos do Homem, tal qual está redigida, sem que fosse preciso mudar apenas uma aspa que seja, poderia substituir com vantagens, no que respeita á rectidão de princípios e à clareza de objectivos, os programas de todos os partidos politicos do mundo, expressamente os da denominada “esquerda”, anquilosados em fórmulas caducas, alheios ou impotentes para enfrentar a brutal realidade do mundo actual, que cerram os olhos às já evidentes e temíveis ameaças que o futuro prepara contra aquela dignidade racional e sensivel que imaginávamos ser a aspiração suprema dos seres humanos.
Acrescentarei que as mesmas razões que levam a referir-me nestes termos aos partidos politicos em geral, as aplico igualmente aos sindicatos locais e, em consequência, ao movimento sindical internacional n seu conjunto. De modo consciente ou inconsciente, o dócil e burocratizado sindicalismo que hoje conhecemos é, em grande parte, responsável pelo adormecimento social resultante do processo de globalização económica em marcha.
Não me alegra dizê-lo, mas não o poderia calar. E, também, se me autorizam a acrescentar algo de particular às fábulas de La Fontaine, então direi que, se não interviermos a tempo – que é dizer já, que o Ratinho dos Direitos Humanos acabará por ser devorado impacávelmente pelo Gato da Globalização Económica.
¿E a democracia, esse invento milenário duns ingénuos atenienses para os quais significava, nas circunstancias sociais e políticas concretas desse momento, e segundo a expressão consagrada, um Governo do Povo, pelo Povo e para o Povo? Ouço muitas vezes explicações de pessoas sinceras, e de comprovada boa-fé, e, a outras que têm interesse em simular essa aparência de bondade, que, apesar de ser uma evidência irrefutavel a sitação de catástrofe em que se encontra a maior parte do planeta, será precisamente no marco do sistema democrático em geral que mais possibilidades teremos de chegar à consecução plena, ou ao menos satisfatória dos direitos humanos.
Nada mais certo, com a condição de que o sistema de governo e de gestão da sociedade a que actualmente chamamos democracia fosse efectivamente democrático.E não o é!,,, É verdade que podemos votar, é verdade que podemos, por delegação da particula de soberania que nos reconhece como cidadãos com direito de voto normalmente num partido, ecolher os nossos representantes ao Parlamento; é certo enfim, que a relevância numérica (de tais representações e combinações politicas que a necessidade de uma maioria impõe) sempre resultará num Governo.Tudo isso está certo, porem é igualmente certo que a possibilidade de acção democrática começa e acaba aqui. O eleitor poderá retirar do poder um governo que não lhe agrade e colocar lá outro no seu lugar, porem o seu voto não tem tido, não tem e nunca terá um efeito visivel sobre a única força real que governa o mundo: refiro-me, obviamente, ao Poder Económico, e em particular àquela parte do mesmo, sempre em crescendo, regida pelas empresaS multinacionais de acordo com estratégias de domínio que nada têm a ver com aquele bem comum a que, por definição, aspira a Democracia.Todos sabemos que tudo é assim, e que por uma espécie de automatismo verbal e mental que não nos deixa ver a crua nudez dos factos, continuamos a falar de “democracia” como se de algo vivo e actuante se tratasse, quando dela pouco mais resta do que um conjunto de formas ritualizadas, de inócuos passos e gestos duma espécie de missa laica.
E não nos precavemos, como se para isso bastasse apenas ter olhos, de que os nossos Governos, esses que para o bem e para o mal elegemos e de que somos, portanto, responsáveis, se vão convertendo cada vez mais em meros comissários politicos do Poder Económico, com a missão objectiva de produzir as Leis que convêem a esse Poder,para depois, envolvidas na doçura da pertinente publicidade, as introduzir no mercado social sem suscitar demasiados protestos, salvo os das certas e conhecidas minorias eternamente descontentes,,,
¿Que fazer? Da literatura à ecología, da guerra das galáxias ao efeito de estufa, do tratamento dos residuos aos congestionamentos de tráfico,tudo se discute neste nosso mundo.
Porém o sistema democrático, como se de um dado definitivamente adquirido se tratasse, intocável por natureza até à consumação dos séculos, esse não se discute.Mas se não estou equivocado, se não sou capaz de somar dois e dois, então, entre tantas outras discussões necessárias ou indispensáveis, urge, antes que se faça demasiado tarde, promover um debate mundial sobre a Democracia e as causas da sua decadência, sobre a intervenção dos cidadãos na vida politica e social, sobre as relações entre os Estados e o Poder Económico e Financeiro mundial, sobre aquilo que afirma e nega a democracia, sobre o direito à felicidade e a uma existência digna, sobre as misérias e esperanças da Humanidade ou, falando com menos retórica, dos simples seres humanos que a compõem, um a um e, todos juntos.
Não há pior engano do que aquele que se engana a si mesmo. E assim vamos vivendo.
Não tenho mais nada a dizer.Ou talvez sim, apenas uma palavra para pedir um instante de silêncio. O camponês de Florença acaba de subir uma vez mais à torre da igreja, e os sinos vão tocar. Oiçamo-los por favor.

(Texto lído no encerramento do Forum Social Mundial reunido em Porto Alegre)

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