“de Portugal não se requeira mais que pedra, tijolo e lenha para queimar, e homens para a força bruta, ciência pouca. Se o arquitecto é alemão, se italianos são os mestres dos carpinteiros e dos alvenéus e canteiros, se negociantes ingleses, franceses, holandeses e outras reses todos os dias nos vendem e nos compram, está muito certo que venham de Roma, de Veneza, de Milão e de Génova, e de Liège, e da França e da Holanda, os sinos e os carrilhões e os candeeiros, as lâmpadas, os castiçais, os tocheiros de bronze, e os cálices, as custódias de prata sobredouradas, os sacrários, e as estátuas dos santos de que el-rei e mais devoto, e os paramentos dos altares, os frontais, as dalmáticas, as planetas, os pluviais, os cordões, os dosséis, os pálios, as alvas de peregrina, as rendas, e três mil pranchas de pau de nogueira para os caixões da sacristia e cadeiral do coro […] e dos países do Norte navios inteiros carregados de tabuado para os andaimes, telheiros e casas de acomodação, e cordas e amarras para os cabrestantes e roldanas, e do Brasil pranchas de angelim, incontáveis, para as portas e janelas do convento, para o solho das celas, dormitórios, refeitório e mais dependências, incluindo as grades dos espulgadoiros”
José Saramago, “Memorial do Convento”, pp 228
o Convento de Mafra, obra de uma promessa del-rei por via da dificultosa fertilidade da rainha, foi concebido para albergar 50 frades arrábidos da ordem dos Franciscanos cujas empenhadas graças junto da autoridade divina fariam emprenhar dona Maria Joana de Áustria, mas acabou por ser ampliado para alojar 300.
“Medita D. João V no que fará a tão grades somas de dinheiro, a tão extrema riqueza, medita hoje e ontem meditou, e sempre conclui que a alma há-de ser a primeira consideração, por todos os meios devemos preservá-la, sobretudo quando a podem consolar também os confortos da terra e do corpo. Vá pois a frade e à freira o necessário, vá também o supérfluo, porque o frade me põe em primeiro lugar nas suas orações, porque a freira me aconchega a dobra do lençol e outras partes e a Roma, se com bom dinheiro lhe pagámos para ter o Santo Ofício, vá mais quanto ela pedir por menos cruentas benfeitorias, a troco de embaixadas e presentes, e se desta pobre terra de supremas artes e ofícios, encomendem-se à Europa, para o meu Convento de Mafra, pagando-se, com o ouro das minhas minas e mais fazendas, os recheios e ornamentos, que deixarão, como dirá o frade historiador, ricos os artífices de lá, e a nós, vendo-os, aos ornamentos e recheios admirados […] Desde que na vila de Mafra, já lá vão oito anos, foi lançada a primeira pedra da basilica, essa de Pêro Pinheiro graças a Deus, tudo quanto é Europa vira consoladamente a lembrança para nós, para o dinheiro que receberam adiantado, muito mais para o que hão-se cobrar no termo de cada prazo e na obra acabada”
(obra citada, pp 229)
Como se vai vendo, basta mudar a designação "frades arrábidos" por "militantes dos partidos do arco do poder", para esta prosa em relação às "grandes obras de regime" estar mais actual que nunca...
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