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quinta-feira, agosto 29, 2013

Sobre o Fenómeno dos Empregos de Merda

(David Graeber argumenta sobre o conceito marxista de trabalho produtivo e trabalho improdutivo)

No ano de 1930 John Maynard Keynes previu que, até ao final do século XX, a tecnologia teria avançado tão eficientemente que países como a Grã-Bretanha ou os Estados Unidos teriam alcançado uma semana de trabalho de 15 horas. Há todas as razões para acreditar que o economista da era do New Deal estava certo. Em termos tecnológicos, teríamos sido capazes disso. E, no entanto tal não aconteceu. Em vez disso, a tecnologia disfarçou-se com diversas roupagens para descobrir maneiras de nos fazer trabalhar mais. A fim de alcançar este objectivo, novos trabalhos tiveram de ser criados, que são, efectivamente, inúteis. Massas enormes de pessoas, na Europa e na América do Norte em particular, passam toda a sua vida profissional na execução de tarefas que eles secretamente acreditam realmente não precisarem de ser executadas. O dano moral e espiritual que advém desta situação é profundo. É uma cicatriz em toda a nossa alma colectiva. Ainda assim, quase ninguém fala sobre isso.

Por que é que a utopia prometida por Keynes - ainda aguardada com grande expectativa nos anos 60 - nunca se materializou? - a linha padrão de hoje é que Keynes não levou em linha de conta o aumento maciço no Consumismo. Posta à consideração a escolha entre menos horas de trabalho e mais brinquedos e prazeres, os indivíduos foram colectivamente induzidos a escolher os últimos. Esta opção apresenta-se como um bom conto moral, mas um momento de reflexão mostra que isso não pode realmente ser verdade. Sim, temos assistido à criação de uma variedade infinita de novos empregos e indústrias, desde a década de 20, mas muito poucos têm nada a ver com a produção e distribuição de sushi, iPhones ou ténis extravagantes. Então, quais são esses novos postos de trabalho, precisamente? Um relatório recente comparando o emprego nos EUA entre 1910 e 2000, dá-nos uma imagem clara. (e eu noto, uma comparação exactamente igual fez eco no Reino Unido). Ao longo do século passado, o número de trabalhadores como empregados domésticos, na indústria e no sector agrícola ruiu dramaticamente. Ao mesmo tempo, "os serviços de vendas, gerência, de escritório, profissionais e trabalhadores de serviços triplicaram, crescendo de um quarto a três quartos do emprego total. Por outras palavras, os empregos no sector produtivo, tal como previsto, foram amplamente substituídos por maquinaria automatizada (mesmo se contarmos os trabalhadores da indústria a nível mundial, incluindo as massas trabalhadoras na Índia e na China, esses trabalhadores ainda não são em tão grande percentagem da população mundial como costumavam ser).

Mas ao invés de permitir uma redução maciça do horário de trabalho para libertar a população mundial e prosseguir os seus próprios projectos - os prazeres, visões e ideias - temos visto a bolha do assalariamento aumentar não só no sector "Serviços" a partir do sector administrativo, mas até incluindo a criação de indústrias novas por inteiro, como os serviços de telemarketing ou financeiros, ou a expansão sem precedentes de sectores como o direito empresarial, académicos, de administração de saúde, recursos humanos e relações públicas. E esses números nem sequer reflectem sobre todas aquelas pessoas cujo trabalho é fornecer serviços administrativos, técnicos, ou suporte de segurança para essas indústrias, ou nessa matéria para toda uma série de indústrias auxiliares (lavadores de carros, entregadores de pizza 24 horas) que só existem porque toda a gente gasta muito do seu tempo de trabalho em todos os outros. Estes são os que proponho chamar de "empregos de merda."

É como se alguém saísse à rua fazendo- o por trabalhos inúteis apenas por uma questão de manter as coisas todas a andar. É aqui, precisamente, que reside o mistério. No capitalismo, isto seria precisamente o que não seria suposto acontecer. Claro que, nos velhos estados socialistas como a União Soviética, onde o emprego era considerado tanto um direito como um dever sagrado, o sistema formado por tantos empregos como eles tinham, levava a que nas lojas de departamento de Estado tivessem três funcionários para vender um quilo de carne. Mas, é claro, este é o tipo de problema que a concorrência de mercado é suposto corrigir. De acordo com a teoria económica capitalista, no mínimo, a última coisa que uma empresa com fins lucrativos vai fazer é desembolsar dinheiro para pagar a trabalhadores que ela realmente não precisa empregar. Ainda assim, de alguma forma, isso acontece. Enquanto as corporações podem envolver-se em reduções crueis, as demissões e a velocidade a que crescem recaem invariavelmente sobre essa classe de pessoas que realmente fazem mover as coisas, fixando-as ou mantendo-as nos sítios, as quais através de alguma alquimia estranha que ninguém consegue explicar, consegue fazer expandir o número de assalariados empurradores-de-papel, e mais e mais trabalhadores se encontram, actualmente não como os trabalhadores soviéticos, mas na verdade, trabalhando 40 ou mesmo 50 horas por semana na papelada, mas efectivamente trabalhando 15 horas, assim como Keynes havia previsto, já que o resto do seu tempo é gasto organizando ou participando em seminários motivacionais, atualizando os seus perfis do Facebook ou fazendo downloads de vídeos e musica.

A resposta é claramente não económica: é moral e política. A classe dominante descobriu que uma população feliz e produtiva com tempo livre nas suas mãos é um perigo mortal (é suposto esta percepção ter começado a acontecer próximo da década de 60). E, por outro lado, o sentimento de que o trabalho é um valor moral em si, e que qualquer pessoa não está disposta a submeter-se a algum tipo de intensa disciplina de trabalho durante as horas em que anda de pé, é um conceito extremamente conveniente.

Certa vez, ao contemplar o crescimento aparentemente interminável de responsabilidades administrativas nos departamentos académicos britânicos, fiquei com uma possível visão do inferno. O inferno é um conjunto de indivíduos que gastam a maior parte do seu tempo trabalhando em tarefas de que eles não gostam e nas quais não são especialmente bons. Dizem que foram contratados porque eram excelentes marceneiros, e depois descobriram que se espera passem uma grande parte do seu tempo a fritar peixe. Não é que a tarefa realmente precise de ser feita - há apenas um número muito limitado de peixes que precisam ser fritos. Mas de alguma forma, todos esses “trabalhadores” tornam-se obcecados com o ressentimento, pensando que alguns dos seus colegas de trabalho podem estar a gastar mais tempo a fazer armários, e não a fazer a sua justa parte nas responsabilidades da fritura de peixe, o que em pouco tempo, resultaria em pilhas intermináveis de inútil peixe mal frito, acumulado por toda a oficina… e isso é tudo o que alguém realmente se faz. Acho que esta é realmente uma descrição bastante precisa das dinâmicas morais da nossa própria economia.

Agora, percebo qualquer argumento que vá incorrer em objeções imediatas: "quem é você para dizer o que são realmente "empregos necessários “? O que é necessário, afinal? Você é um professor de antropologia, qual é a "necessidade" de se precisar disso? "- (E, na verdade um monte de leitores de tablóides levaria a existência do meu trabalho como a sua própria definição de desperdício nas despesas sociais). E em certo nível, isso é obviamente verdadeiro . Não pode haver uma medida objectiva de valor social?

Eu não me atreveria a dizer a alguém convencido de que eles estão dando uma contribuição significativa ao mundo que na verdade eles não dão. Mas o que acontece com aquelas pessoas que se convenceram que os seus trabalhos não têm sentido? - não há muito tempo atrás voltei ao contacto com um amigo de escola que eu não via desde os meus12 anos. Fiquei espantado ao descobrir que nesse intervalo, ele se tinha tornado pela primeira vez num poeta, o homem de palco de uma banda de rock indie. Eu tinha ouvido algumas das suas músicas na rádio sem ter ideia que o cantor era alguém que eu realmente conhecia. Ele era, obviamente, brilhante, inovador, e o seu trabalho tinha, sem dúvida, iluminado e melhorado vidas de pessoas em todo o mundo. No entanto, depois de um par de álbuns sem sucesso, ele tinha perdido o seu contrato, e atormentado com dívidas e uma filha recém-nascida, acabou, como ele dizia, por "tomar a opção padrão de tanta gente sem rumo: a Faculdade de Direito" Agora ele é um advogado corporativo trabalhando numa proeminente empresa de Nova York. Ele foi o primeiro a admitir que o seu trabalho era totalmente sem sentido, não contribuindo em nada para o mundo, e, na sua própria opinião, não deveria existir.

Há um monte de perguntas que poderiam ser feitas aqui, começando com, o que isso diz sobre a nossa sociedade que parece gerar uma procura extremamente limitada para talentosos poetas-músicos, mas uma procura aparentemente infinita de especialistas em direito empresarial. (Resposta: Se 1% da população controla a maior parte da riqueza disponível, aquilo a que chamamos de "o Mercado" reflete o que essa ínfima minoria acha que é útil ou importante, e não a mundivisão de qualquer outra pessoa). Mas, ainda mais, mostra que a maioria das pessoas nesses empregos estão finalmente cientes disso. Na verdade, eu não tenho a certeza se já conheci um advogado corporativo que não achasse que o seu trabalho fosse uma estupidez. O mesmo é válido para quase todas as novas indústrias acima descritas. Há toda uma classe de profissionais assalariados – e você deve conhecê-los nos convívios sociais - que admita que você faz algo que possa ser considerado interessante, (um antropólogo, por exemplo) e vão mesmo querer evitar discutir totalmente a sua linha de trabalho. Dê-lhes algumas bebidas, e eles vão-se lançar em discursos inflamados sobre como inútil e estúpido o seu trabalho realmente é.

Há aqui uma violência psicológica profunda. Como pode alguém pode sequer começar a falar da dignidade no trabalho quando sente secretamente ter um posto de trabalho que não deveria existir? Como poderá ele não criar um sentimento de profunda raiva e ressentimento.? No entanto, é no génio peculiar da nossa sociedade que os seus governantes vão descobri uma maneira - como é o caso das fritadeiras de peixe - para garantir que a raiva é dirigida precisamente contra aqueles que realmente não conseguem obter um trabalho que signifique alguma coisa. Por exemplo: na nossa sociedade parece haver uma regra geral segundo a qual é obvio que o trabalho que cada um faz benefícia outras pessoas, e por isso considera ser mal pago. Mais uma vez, é difícil de encontrar uma medida objectiva, mas uma maneira fácil de obter um sentido é perguntar: que aconteceria se toda esta classe de pessoas viesse simplesmente a desaparecer?

Diga o que se disser sobre enfermeiros, empregados do lixo, ou mecânicos, é óbvio que se eles desaparecessem numa nuvem de fumo, os resultados seriam imediatos e catastróficos. Um mundo sem professores e os locais de trabalho em breve estariam em apuros… e até mesmo um sem escritores de ficção científica ou músicos de ska seria claramente um lugar menor. Não é totalmente claro o modo como a humanidade iria sofrer se todos os administradores de private equity, lobyistas, investigadores, seguradores, operadores de telemarketing, oficiais de justiça ou consultores legais fossem desaparecer da mesma forma. (Muitos suspeitam que podia melhorar sensivelmente). No entanto, para além de um punhado de bem elogiadas excepções (os médicos), a regra mantém-se surpreendentemente bem. Ainda mais perverso, parece haver um amplo sentido que esta é a maneira como as coisas deveriam ser. Este é um dos secretos pontos fortes do populismo de direita. Você pode senti-lo quando os tablóides empunham o chicote do ressentimento contra os trabalhadores do Metro quando paralisam Londres durante disputas contratuais: o facto de que os trabalhadores do Metro possam paralisar espectáculos em Londres mostra que o seu trabalho é realmente necessário, mas isso parece ser exactamente o que incomoda as pessoas. É ainda mais claro nos EUA, onde os republicanos têm tido um sucesso notável na mobilização do ressentimento contra professores, ou trabalhadores da indústria automóvel (e não, de forma significativa, contra os administradores escolares e gestores da indústria automobilística que realmente causam os problemas) com os seus salários e rendimentos supostamente inflaccionados. É como se eles nos estivessem dizendo: "mas você precisa de ensinar as crianças! Ou fazer carros! E aí você começa a ter empregos de verdade! E em última instância, quem tem a coragem de também esperar pensões de reforma na classe média ou cuidados de saúde?

Se alguém tiver desenhado um regime de trabalho perfeitamente adequado para manter o poder do capital financeiro, é difícil ver como poderiam as pessoas ter feito um trabalho melhor. Realmente, os trabalhadores produtivos são implacavelmente espremidos e explorados. Os restantes são divididos entre um aterrorizado extracto dos universalmente insultados, como os desempregados, e um extracto maior que são basicamente pagos para não fazer nada, em cargos destinados a torná-los identificáveis com as perspectivas e sensibilidades da classe dominante (gerentes, administradores, etc.) - e, particularmente os seus avatares financeiros - cuja actividade, ao mesmo tempo, promove um ressentimento contra aqueles cujo trabalho tem um valor social claro e inegável. Claramente, o sistema nunca foi concebido conscientemente. Surgiu a partir de quase um século de tentativas e erros. Mas é a única explicação para o porquê, apesar das nossas capacidades tecnológicas, todos os dias de trabalho não terem apenas entre 3 a 4 horas.

(Original: “On the Phenomenon of Bullshit Jobs” by David Graeber)

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