“Se ficarem na cidade, não olhem para os ornamentos, laços e enfeites, para as montras, para as pessoas atarefadas, para os homens e as mulheres que conduzem, não ouçam os barulhos que produzem, resistam às prendas, às marcas e atracções da paróquia e olhem só para cima, observem como a cidade pode ser esplendorasamente sugestiva. E grande.
Se passarem pelo centro aproveitem e vejam a exposição do Almada Negreiros que está no Museu do Chiado. Leiam ou releiam as “Cidades Invisiveis”, de Italo Calvino e entre um levantar de olhos do livro, dediquem um tempo a observar as vossas plantas e reparem no ritmo microscópico do seu crescimento e da serenidade com que vivem, indiferentes ao bulicio da vida lá fora. Arredem os moveis e os tapetes, se é que vos sobrou dinheiro para os ter, depois da letra do banco – estendam-se e descontraiam-se no chão e exercitem os músculos, as articulações, mexam-se e respirem conscientemente. Se puderem resistam à TV, ao Cabo e a toda essa parafernália. Não vejam noticias e o que eles querem que se passe. Desintoxiquem-se. Façam a vossa própria história. Descubram os pequenos prazeres que se deparam nas pequenas banalidades que nos circundam. E se mesmo até uma mosca, no vosso lar, ainda resistir aos frios das chuvas, observem como ela inocentemente tenta sobreviver às agruras do tempo, simplesmente tentando aquecer-se no abat-jour da sala. Falem com ela e chamem-lhes nomes para afugentar o vosso tédio. Terminado o vosso périplo quotidiano, descalcem o que vos liga à terra, deslizem no sofá e deixem-se levar pelos pensamentos, com os olhos fixos no tecto, cruzados com os barulhos de fundo da casa e da cidade, expandindo-se para todo o território, para o continente, para os mares e outras cidades, o mundo, o planeta, os outros planetas, as constelações, todos os sistemas, o universo, as estrelas, o branco, o preto, o buraco, até mesmo ao vazio. No dia seguinte, ao recomeçar, rotineiramente, o dia de mais um dia, não se esqueçam de estar atentos então aos pequenos sinais, acontecimentos e simples curiosidades que podem surgir de um momento e que ajudam a construir e a procurar em nós tudo aquilo que roubámos aos outros”
Miguel Pereira, Coreógrafo
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