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quarta-feira, junho 14, 2006

A Exposição de Frida Kahlo no CCB

Como é que se pretende conseguir enganar 100 mil pessoas com um falso conceito de Arte, desligando-a da História? – falsificando-a?!

António Campos Rosado (!), um obscuro funcionário da cultura, autor do catálogo da mostra, (que anteriormente já passou pela Tate de Londres e se baseia apenas na reduzida colecção da ex-amante de Rivera, Dolores Olmedo Patiño) consegue a proeza de apresentar Frida Kahlo, uma artista naif de inspiração popular mexicana, sem uma única referência artística a Diego Rivera. Mesmo quando se refere a uma obra que leva o titulo de “Paixão por Diego Rivera”, Rosado menciona-a como sendo “desse artista” não o citando expressamente. António Mega Ferreira pouco melhor faz ao dedicar apenas uma linha do prefácio à “relação de Frida com Diego Rivera, artista maior do México insurgente”. (tem razão – alguma coisa legou esse México: é daí que parte em 1959 o iate “Gramna” com Fidel e os seus companheiros em direcção à Serra Maestra, para acabar com a opressão em Cuba). De volta ao CCB, na nota que acompanha a litografia “Frida e o aborto” (1932) o preclaro Rosado, incorre num erro grosseiro, atribuindo à autora a frase escrita na margem em inglês: “estas cópias não são boas nem más, dada a tua experiência.Trabalha duro e conseguirás melhores resultados” – quando na verdade a frase foi aí manuscrita por Rivera. Nos apontamentos bibliográficos do catálogo escamoteia-se novamente que a história de Diego Rivera é a história da Revolução Mexicana (1914-1915), e que ambos, Diego e Frida, foram dois empenhados membros do Partido Comunista.

Rivera acreditava que a Arte devia desempenhar um papel que habilitasse as classes trabalhadoras a compreender a sua própria história



Frida, em baixo à esquerda, faz companhia ao marido, enquanto este trabalha, e a representa, à direita, no seio do seu povo, num quadro que retrata a opressão.

A Revolução de 1910, onde emergiram Francisco Villa e Emiliano Zapata, (representados por Rivera no Palácio Nacional, no mural “Terra e Liberdade”) que pôs fim à ditadura de Porfirio Diaz deu inicio a uma série de alterações politicas, económicas e sociais. Em 1922 o jovem Diego Rivera regressado da Europa, um dos fundadores do movimento muralista no México pintava “A Criação” no Anfiteatro Bolivar da Escola Preparatória Nacional na Cidade do México, aí manifestando desde logo o seu gosto pela subversão e um instinto rebelde contra a Autoridade.

Militâncias:
Em 1922 Rivera pintou o retrato de Lenine, quando este estava já gravemente doente, depois de nunca ter conseguido recuperar do atentado de que tinha sido alvo em 1918.
No Citi.pt existe uma breve monografia de Rivera redigida por Álvaro Cunhal.

Frida era então uma jovem adolescente privilegiada, uma das 35 mulheres entre os 2000 estudantes, que frequentavam a escola. Libertina, arranjou um caso amoroso passageiro com Diego simulando interessar-se pela pintura. A sua vida prosseguia no seio de um grupo de noctivagos apelidados de “os Cachuchas” quando em 1925 sofre um grave acidente ao viajar de autocarro com o seu namorado de então Alejandro Gómez Arias, que a incapacitou fisicamente de forma grave. Em 1927 quando começou a conviver com o grupo de intelectuais de esquerda de Tina Modotti (companheira do cubano Julio António Mella uma das grandes figuras da revolução) Frida decide filiar-se no Partido Comunista. Em 1928 Diego e a mulherLupe Marin, de quem se viria a separar logo de seguida, voltam de visitar a União Soviética. É aí, nesse âmbito que, com 22 anos, Frida reencontra o mestre Diego, bastante mais velho do que ela, tinha então 42 anos. Relação sentimental reatada, é aqui, quando em 1929 se casa com o Mestre que se inicia o desenvolvimento intelectual de Frida e a sua apetência por pintar, enamorada das obras do seu idolo. O casamento de uma pomba com um elefante. Jamais Frida Kahlo pintaria a ponta dum corno se não se tivesse relacionado com Diego Rivera. Porém o assassinato do revolucionário Julio Mella marcou a ruptura de Diego com o Partido.



em cima
no mural "o Arsenal" Diego Rivera pintou Frida a destribuir armas aos revolucionários (onde estão tambem representados Julio Antonio Mella e Tina Modotti)
em baixo:
"A Distribuição de Terras" (El Reparto de Tierras-1924) - os camponeses na Escola sob o olhar do Poder, e como pano de fundo, os Trabalhadores - Universidade Autónoma de Chapingo.



Acreditava-se que a Revolução acabaria por eclodir na América, o coração do centro capitalista. Em 1930 Rivera parte para San Francisco de onde, atraidos pela sua fama, lhe tinham sido encomendados os murais da Stock Exchange, o palácio da Bolsa da cidade e outros na California School of Fine Arts. Frida acompanha-o e vê aí a sua 1ª obra exposta “Frida e Rivera”, por graça do amigo do casal Imogen Canningham. A aventura americana prosseguiu visitando New York (1931) e em Detroit no auge da Grande Depressão, em 1932 aceita, na fábrica de Henry Ford, elaborar uma grandiosa elegia glorificando a Classe Operária e a esperança da Era Industrial como via para o desenvolvimento social do Homem. No centro do mural ficou eternizado, o que gerou alguma controvérsia na época, Edsel Ford, o filho de Henry, e ainda hoje, para os pró-americanos indefectiveis, a obra permanece como a mais significativa das executadas por Rivera na América do Norte. Porém a grande polémica estalou em 1933 novamente em New York, desta vez no Rockefeller Center onde o magnata encomendou a Rivera as pinturas decorativas das paredes do Rádio City Hall. Intitulado "Man at the Crossroads" ("O Homem na Encruzilhada") Rivera pintou um gigantesco Primeiro de Maio de trabalhadores manifestando-se com uma profusão de bandeiras vermelhas. Este porém não era o motivo principal que viria a inflamar as Associações Patronais da cidade, mas o facto de à frente estar Lenine liderando a manifestação. Neste fresco Rivera fazia a exaltação do comunismo e uma crítica dura do capitalismo, "mostrava ao mundo a convicção optimista de que "um dia" o homem será dono do seu destino em vez de ser empurrado para ali e acolá por forças que ele não é capaz de controlar". Quando Rivera recusou remover o retratado, o trabalho foi suspenso e os cães de guarda de Rockefeller destruíram a obra. Com o dinheiro que tinha recebido Diego criou e ofereceu outro mural ao Independent Labor Institute, onde manteve Lenine como figura central.

Frida pintava nas horas de ócio, enquanto esperava que o marido terminasse os seus periodos de trabalho; e o que pintava Frida? – por exemplo, entre outros anteriores, este retrato de Estaline, que os gestores do CCB apreciariam ter sido apagado da história:




"Frida e Estaline", 1954

De volta ao México em 1934, a Coyacan, um subúrbio da capital, o pintor, um inveterado mulherengo, (deliciosamente retratado numa peça de teatro exibida no mesmo CCB no âmbito do Festival de Almada em 2002) envolve-se num caso amoroso com a irmã de Frida, Cristina Kahlo. Data desta época o quadro de Frida “Umas quantas facaditas”. O episódio marcou o principio da separação do casal. Em 1936 ainda militaram em conjunto recolhendo fundos em apoio aos republicanos que combatiam o fascista Franco quando eclodiu a Guerra Civil em Espanha. Em 1937 Leon Trotsy e a mulher Natália Sedova, dissidentes da Revolução Russa, chegam ao porto de Tampico com honras de recepção pela presidência da República do México, ficando hospedados na casa de Coyacan.

Trotsky aparece representado no mural "O Homem controla o Universo" na Escola Nacional de Belas Artes, na Cidade do México

Depois da separação Frida parte para a Europa. “As Duas Fridas” é um comovente retrato da separação. Divorciada, em 1939 vamos encontrá-la em Paris no grupo de André Breton – cuja amizade lhe valeu algum trabalho para a revista cor de rosa Vogue ganhando algum dinheiro para sobreviver, e para futuro uma certa conotação com os surrealistas, que lhe haveria de ser util à maior parte da sua obra, criada a partir daí. (aqui em “o Amor abraça o Universo, Eu e o senhor Xoloti” onde se representa com Diego ao colo - não presente no CCB).







Pablo Neruda, David Siqueiros e Diego Rivera

Nesse ano de 1939 na costa Oeste dos Estados Unidos é inaugurada a famosa ponte Golden Gate coincidindo com a abertura da auto-estrada Oakland-San Francisco o que traz milhares de carros (a idolatria do progresso nos USA) à "Golden Gate International Exposition" aberta na Ilha do Tesouro. Diego Rivera é convidado para participar no grande evento com a criação de um grande mural feito ao vivo no recinto da exposição com a colaboração de uma grande diversidade de artistas - a obra ficou conhecida por "Unidade Pan-Americana" e nela se procurava expressar o casamento artistico do Norte e do Sul de todo o Continente americano. Frida é tão desconhecida como artista que os jornais da época se lhe referem apenas como Miss Rivera, a qual se faz no entanto notar pelo exotismo dos seus trajes recriados das tradições ancestrais do México.
Trotsky é assassinado em circunstâncias misteriosas em 1940. No ano seguinte o casal Rivera regressa à Casa Azul de Coyacan, onde Frida continua a querer aprender a pintar sob carinhosa vigilância do companheiro. Pouco depois é incluida na "Exhibition by 31 Women", dedicada ao surrealismo na Galeria do Centro de Artes Peggy Guggenheim em New York. Em 1944, já muito doente inicia a escrita dos seus pungentes "Diários", autênticos retratos escritos do marido e da sua obra. Torna-se patente que a sua vida trata de Comunismo, Arte e Diego Rivera. Reconcilia-se com o Partido Comunista em 1948. Contudo, depois da longa divergência, Rivera só viria a ser readmitido em 1954. Um ano antes acontece a única exposição individual de Frida em vida, na Galeria de Arte Comtemporânea do México, dirigida pela amiga Lola Alvarez Bravo, onde aparece como um ícone numa cama de rodas, logo após a perna direita gangrenada lhe ter sido amputada. Magdalena Carmen Frida Kahlo y Calderón, culminando um longo periodo de atroz sofrimento morreu em 1954, sendo um dos seus ultimos actos publicos conhecidos a presença numa manifestação em Julho desse ano contra a intervenção da CIA na Guatemala.
As suas cinzas repousam num vaso pré-colombiano na Casa Azul de Coyacan, hoje transformada em Museu. Diego Rivera morreu com 70 anos de idade, em 1957.

Que moral se pode extrair da exposição truncada do CCB? - que aqueles que dizem representar o Ocidente andam mal quando pretendem descontextualizar a Arte da História, apagando figuras da nossa herança cultural, fingindo não inocentemente, que o Marxismo não é tambem ele uma corrente da filosofia ocidental. Áqueles, os responsáveis pelo CCB, que só viram em Frida Kahlo o "surrealismo", deveria ser exigivel, ao abrigo do direito de resposta do público, uma exposição sobre a vida e obra de Rivera, onde constasse a Frida que faltou dignificar naquilo a que dedicou toda a sua vida e obra.

Auto retrato de Frida Kahlo, no ano da sua morte (1954):
"El Marxismo Dará Salud a los Enfermos"


Se existe algo de que os politicamente hibridos se envergonhem, ou tenham relutância em assumir como sendo de facto o Socialismo uma herança da nossa cultura, cuja mais conhecida experiência será o auto-denominado e fracassado Socialismo de Estado (imprópriamente designado pela propaganda neoconservadora como "comunismo", mas que de facto não passou, desde a década de 60, de mais uma versão de Capitalismo de Estado) - é a altura de, utilizando as mais-valias de conhecimentos adquiridos, proceder de forma aberta à auto-critica da parte do Capitalismo sobrante - que ainda não derrocou, mas para lá caminha, a passos largos, onde "a falência anunciada pelo neoliberalismo é o expediente para privatizar o social"
O problema da nossa crise civilizacional, não pode ser fraudulentamente tratado no âmbito de uma pretensa "guerra entre civilizações" - trata-se de um confronto entre o Ocidente e ele mesmo.

"a reflexão sobre os valores que fundamentam o Ocidente é vital. Combater em nome de quê? Para defender o quê? A autora deste livro, uma filósofa nascida no Próximo Oriente e a viver em França, traz-nos uma resposta irreverente, explicando de que forma o pensamento ocidental permite a cada ser humano, onde quer que tenha nascido e qualquer que seja a sua história, deixar a prisão das suas dependências sociais".


"Os Dois Ocidentes", Nayla Farouki
(Editado em português pelo Instituto Piaget)

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