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segunda-feira, fevereiro 06, 2006

Os Incas e os novos conquistadores


A gravura de Guaman Poma que mostra o suplicio de Thupac Amaru na praça principal de Cuzco é uma imagem impressionante. Os rosto dos três verdugos espanhóis são máscaras sorridentes, sádicas, em contraste com a fileira de súbditos incas que expressam uma mistura de perplexidade e dor colectiva. O tosco desenho faz parte das ilustrações de um livro publicado em 1636 em Paris, já Frei Bartolomé de las Casas havia escrito a “Brevissima relação da destruição das Indias”, em que narra sórdidos ormenores do etnocidio em curso. Aí se aclara o despropósito de teimosias revisionistas que sustentam o anacronismo do julgamento de acções transactas à luz de valores contemporâneos. Não é este o caso: não eram os próprios conquistadores que violavam os seus próprios compromissos e valores? Leia-se o relato, entre tantos possiveis (como o da cilada armada a Montezuma, no México), do insuspeito monge franciscano Frei Juan de Zumarraga que se referia a um episódio que lembra o martírio de Thupac Amaru: “... Vi que chamavam os caciques e ilustres indios para que viessem em paz e sem desconfiança, e em chegando eles, logo os queimavam(...), pois com nenhuma verdade para com eles procederam, nem cumpriram a palavra dada, senão que contra toda a razão e injustamente, tiranicamente os destruiram assim como toda a terra...”.
Os descendentes dos Incas que hoje cruzam as veredas dos Andes são seres silenciosos, reservados, um contraponto do espalhafato desportivo dos trekkers europeus e norte americanos em férias. Não tiram, as mais das vezes, os olhos do chão. Caminham como se fossem sombras ténues, deslizando sobre o chão em dia de nuvens, mas são eles os herdeiros do povo que suportou estoicamente a conquista espanhola e se negou a falar das suas cidades mais recônditas – como Machu Picchu – das suas crenças e dos seus rituais, dos seus deuses mais amados. Não se sabe se Machu Picchu fooi uma cidade sagrada, mas a sua localização atesta a importância que os incas atribuiam à natureza, tão evidente nas práticas agricolas do Vale Sagrado e nos terraços andinos. Hoje, Machu Picchu só conhece serenidade durante a noite, depois da mundana tropa turistica recolher à caserna. Cosme Cuba, o guia que me conduz por entre as pedras, esforçando-se por se fazer ouvir entre gritos e gargalhadasde feira. À volta de uma árvore, um grupo de turistas “esotéricos” e exibicionistas senta-se em posição de ioga e de mãos dadas... O bilhete que pagaram dá-lhes esse o poder, o de transformar Machu Picchu no seu parque privado de diversões. No dia seguinte, o bolo tem duas cerejas. Nas ruas de Cuzco, dois policias de fatiota irrepreensivel escorraçam uma mulher e duas crianças que em esfarrapados trajes tradicionais se fazem às fotografias dos turistas, os novos conquistadores. Mais tarde, no autocarro de regresso à Bolivia, um garoto franzino canta, desafinado, uma canção em quechua, na expectativa de algumas moeditas. A turistada apessa-se a repor a ordem e manda-o calar. No video de bordo, a concorrência é mais forte: uma fita de Hollywood, com um tal Bruce Willis e alguns dos seus pares.

Humberto Lopes, no suplemento "Fugas"

* Proximamente, nas eleiçoes de Abril no Peru, o candidato favorito à presidência é o tenente-coronel Ollanta Humalla, cuja plataforma é nacionalizar de volta a economia, recuperar o veio nacionalista inca, e criar uma “segunda república” para governar com o povo.
* www.quechuanetwork.org/

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