(in Le Nouvel Esprit du Capitalisme, 1999)
Durante esta crise, tivemos mais do que nunca a impressão de que as “classes dominantes” não dominavam grande coisa; de que, pelo contrário, eram elas próprias dominadas pelo “sujeito autónomo” (Marx) do Capital (1). Durante a crise, esteve outra vez na moda citar Marx. Mas o pensador alemão não falou apenas de lutas de classes. Previu também a possibilidade de que um dia a máquina capitalista parasse por si só, que a sua dinâmica se esgotasse. Porquê? A produção capitalista de mercadorias contém, desde a origem, uma contradição interna, uma verdadeira bomba-relógio, situada nas suas próprias bases. Não é possível fazer frutificar o Capital, e portanto acumulá-lo, sem ser explorando a força de trabalho. Mas o trabalhador, para gerar um lucro para o seu patrão, tem de estar equipado com as ferramentas necessárias, e hoje com as tecnologias de ponta. Daí resulta uma corrida constante – a concorrência assim o obriga – pelo uso das tecnologias. O primeiro empregador a recorrer a novas tecnologias ganha sempre, porque os seus trabalhadores produzem mais do que os que não dispõem dessas ferramentas. Mas o sistema inteiro perde com isso, porque as tecnologias substituem o trabalho humano. O valor de cada mercadoria particular contém assim uma porção cada vez mais diminuta de trabalho humano – que no entanto é a única fonte de mais-valia, e logo de lucro. O desenvolvimento da tecnologia reduz os lucros na sua totalidade. Todavia, durante século e meio, o desenvolvimento da produção de mercadorias à escala global pôde compensar esta tendência para a diminuição do valor de cada mercadoria particular.
Desde os anos de 1960, este mecanismo – que já não era mais que uma contínua fuga para a frente – enraizou-se. Os ganhos de produtividade permitidos pela microelectrónica trouxeram, paradoxalmente, a crise ao capitalismo. Eram necessários investimentos cada vez mais gigantescos para, de acordo com os padrões de produtividade do mercado mundial, fazer trabalhar os poucos operários que restavam. A acumulação real do Capital ameaçava parar. Foi nesse momento que o “capital fictício”, como lhe chamou Marx, levantou voo. O abandono da convertibilidade do dólar em ouro, em 1971, eliminou a derradeira válvula de segurança, a última ancoragem à acumulação real. O crédito (2) não é mais do que uma antecipação dos ganhos futuros esperados. Mas quando a produção de valor, e portanto de mais-valia, na economia real estagna (o que nada tem que ver com uma estagnação da produção de coisas – mas o capitalismo gira em torno da produção de valor, e não de produtos enquanto valores de uso), só as finanças permitem aos proprietários de Capital fazer lucros já impossíveis de obter na economia real.
A ascenção do Neoliberalismo a partir de 1980 não era uma manobra ignóbil dos capitalistas mais ávidos, nem um golpe de Estado montado com a cumplicidade de políticos complacentes, como quer fazer crer a “esquerda radical”. Pelo contrário, o Neoliberalismo era a única maneira possível de prolongar ainda um pouco mais o sistema capitalista. Um grande número de empresas e de indivíduos conseguiu manter durante muito tempo uma ilusão de prosperidade graças ao Crédito. Agora essa muleta também se partiu.Mas o regresso ao keynesianismo, evocado um pouco por todo o lado, será totalmente impossível: já não há dinheiro “real” suficiente à disposição dos Estados, isto é, dinheiro que não tenha sido criado por decreto ou por especulação, mas que seja o fruto de uma produção de mercadorias conforme aos padrões de produtividade do mercado mundial. Por agora, os “decisores” adiaram ainda um pouco mais o Mane,Thecet Phares (3) juntando um outro zero aos algarismos extraordinários escritos nos ecrãs e aos quais já nada corresponde. Os créditos acordados para salvar os bancos são dez vezes superiores aos buracos que faziam tremer os mercados há vinte anos – mas a produção real (dito de forma banal, o PIB) aumentou cerca de 20-30%! O “crescimento económico” dos anos 1980 e 1990 já não tinha uma base autónoma, era devido às bolhas financeiras. E quando essas bolhas tiverem rebentado não haverá “saneamento” a partir do qual tudo possa recomeçar"
(in “Sobre a Balsa de Medusa”, Ensaios Acerca da Decomposição do Capitalismo,´pp 47-50 Anselm Jappe, edições Antígona, 2012)
O Naufrágio Made-in-USA, (The-Raft-of-Illusions) Grupo Metamorphosis
(1) "... com efeito, derivamos para uma situação em que os humanos não são mais que «resíduos» (Zygmunt Bauman). As inúmeras pessoas que sobrevivem a vasculhar no lixo - e não só no «terceiro mundo» - mostram onde vai finalmente uma humanidade que estabeleceu como exigência suprema o processo de valorização mercantil: é a própria humanidade que se torna supérflua quando já não é necessária para a reprodução do capital-fetiche. Há uma quantidade cada vez maior de pessoas que já não «servem», nem mesmo para ser exploradas, ao mesmo tempo que lhes foram retirados todos os recursos para viver. E os que dispõem de recursos fazem frequentemente um muito mau uso deles (...)" pp. 10-11
(2) o Crédito prolonga não só o sistema enquanto tal, mas também o dos consumidores. E grande parte do “dinheiro fictício” impresso desde 1971 (dólares como moeda de referência global) passou a ter como única finalidade promover o endividamento ao consumo para que as empresas multinacionais pudessem ter mercado de escoamento para a sua produção.
(3) Baltazar, o último rei da Babilônia viu-se cercado na sua capital por Ciro quando estava envolvido numa orgia com os seus cortesãos. Numa gabarolice impiedosa o rei estava a ser servido nas jarras sagradas que Nabucodonosor tinha mandado recolher ao templo. Comprometido na profanação, Baltazar viu com horror uma mão invisível traçar na parede em letras de fogo estas palavras misteriosas: “Mane Thecet Phares”. Chamado à pressa o profeta Daniel para interpretar o acontecimento fê-lo deste modo: “Os teus dias estão contados, desiquilibraste a balança, o teu reino será invadido e dividido”. Nessa mesma noite, de facto, a cidade foi tomada, Baltazar foi morto e o reino foi dividido entre os Persas e os Medos
Sem comentários:
Enviar um comentário