De acordo com dados do livro “
Quem paga o Estado Social” a que se refere o artigo de Raquel Varela (Público 22/11), cerca de 75% da tributação entregue ao Estado provém de impostos colectados sobre os trabalhadores. Equacionando este número com a despesa do Estado na prestação de serviços sociais (saúde, educação, segurança social, transportes, desporto, espaços públicos, cultura) concluiu-se que
o Estado Social é totalmente auto-sustentado por quem vive do Salário. Fica claro que o dinheiro que o Estado recebe chega para pagar os custos em bens sociais; quem não tem mais dinheiro que o que resulta da colecta dos contribuintes não deveria ter vícios (1); Porém o Estado quer fazer mais obras, nessas áreas ou noutras que considere de desenvolvimento, e pede dinheiro emprestado,
contraindo dívidas. É aqui que residem as dúvidas sobre uma parte da dívida não ser ilegítima, isto é, aquela que a maioria dos portugueses estariam dispostos a
pagar por lhes parecer legalmente contraída. O que pressupunha que a escolha dos projectos onde se gasta o dinheiro fosse democrática, ou seja, precedida de debate sobre a sua utilidade, escolha de prioridades, isenta de interesses particulares e votação amplamente participativa.
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Não é o caso,
nem Raquel Varela põe em cheque a verdadeira natureza das Dividas Soberanas. Não são só as "rendas" que os privados recebem nos chorudos negócios com o Estado que estão na origem do descalabro financeiro do país. Este radica na opção do Estado português (através das normas do Banco de Portugal)
só poder contrair dívida cumprindo os estatutos do Banco Central Europeu, por recurso aos bancos comerciais privados, que por sua vez fazem refinanciar essas dívidas no BCE (com o aval e garantias do Estado português) ou no "mercado", isto é, a juros muito mais elevados noutros bancos comerciais ou de investimento estrangeiros privados.
Ao Estado português está vedado contrair dívida directamente ao BCE; e todos esses bancos comerciais que fazem a intermediação nos empréstimos, como se tem vindo a esclarecer desde a eclosão da crise em 2008, estão envolvidos no autêntico jogo da roleta neoliberal, através dos quais inclusivamente se tem jogado (e desde 2002 perdido) os Fundos da Segurança Social.
O processo de
acumulação capitalista sobre as dívidas privadas começou a ruir em 2007 com o estouro da bolha especulativa no mercado imobiliário nos Estados Unidos, a que se seguiu o colapso da construção de imóveis na Irlanda, no Reino Unido, na Espanha, etc. Os preços das habitações produzidas em grandes quantidades foi alimentado por décadas de crédito barato irresponsável, sobre uma
falta de planeamento condenável. Portugal tem hoje 25 milhões de fogos construídos, embora apenas tenha cerca de 10 milhões de habitantes. Num autêntico
esquema de Ponzi, de acumulação de fundos financeiros especulativos transacionados em bolsa sobre o valor inflacionado do imobiliário, acrescentando dinheiro sobre dinheiro numa espiral delirante, todo esse edifício construído sobre fundações de dinheiro fictício ruiu, quando deixaram de entrar no esquema novos compradores e os preços colapsaram abruptamente. Mas entretanto
essa exorbitância de valores inexistentes existiam de facto nos livros de contabilidade dos bancos. Que fazer?
Ainda hoje
se continuam a apurar em que quantidades existem esses “papéis tóxicos” (acções derivadas). Passaram seis anos. Desde 2007 a 2012 os principais Bancos Centrais deram prioridade absoluta à política de tentar
evitar o colapso total do sistema bancário privado. Mas, não o fazem todos da mesma maneira – a Reserva Federal norte americana (em dólares, a moeda de referência global) e o Banco de Inglaterra (em libras)
podem ambos emitir dinheiro e emprestá-lo directamente ao Estado, que por sua vez decide politicamente das ajudas aos bancos privados. O Banco Central Europeu, por força do seu estatuto de subserviência àquelas duas bolsas financeiras (Wall Street e City de Londres) não pode emprestar dinheiro directamente ao Estado; apenas por intermédio da Banca comercial, que por sua vez o empresta aos Estados com a garantia destes a juros sete ou oito vezes maiores. Esta é a principal
razão da “crise das dívidas soberanas” se ter centrado na Europa. (2)
Entre 1990 e 2007 o volume de produtos financeiros derivados (tóxicos) cresceu exponencialmente. Embora tenha sofrido um ligeiro decréscimo em 2008 o valor nominal das acções de derivativos nos balcões comerciais do mercado alcançou em 2011 o número surpreendente de 650,000 mil milhões de dólares (
U$ 650.000.000.000.000), ou seja, cerca de
10 vezes o valor de tudo o que se produz pela totalidade da população do mundo inteiro durante um ano (medido pelo total dos Produtos Internos Brutos, PIB (3).
Em Março de 2009 o departamento do Tesouro dos EUA fabricou a primeira tranche de dinheiro especialmente destinado a ser integrado num plano para comprar 1 trilião de dólares de activos “tóxicos” do sistema bancário americano. Depois dessa “ajuda” (bailout) inúmeras outras se têm seguido,
algumas delas mantidas secretas (4). O objectivo foi limpar as carteiras de crédito dos bancos para tentar restaurar a confiança no “mercado”, isto é, supõem-se que esta entidade supostamente abstracta só voltará a acumular capital em condições consideradas “normais” para os capitalistas se os imóveis se voltarem a valorizar e se os devedores de hipotecas pagarem as dívidas. Enquanto isto não acontece, e por causa da execução desta politica, os prejuízos derivados das vigarices dos bancos privados são transferidos para a dívida pública. Em 2007 a dívida portuguesa era de 68,3% do PIB, em 2013 o governo prevê que seja de 117,1% do PIB. (em 1974 a dívida pública era de 10% do PIB).
Nestas circunstâncias, longe de ser uma cura e protecção eficaz contra os caprichos e desmandos dos bancos,
os planos de resgate decididos pelos Estados estabeleceram, ao contrário, um forte incentivo para os bancos continuarem e intensificarem as suas práticas ilegítimas e em grande parte criminosas. Na verdade, "a perspectiva de apoio dos governos causam danos morais à totalidade da sociedade, na medida em que incentivam os bancos a uma maior assumpção de riscos" que sabem permanecerão impunes.
“Em Portugal, em 2012, os
bancos continuam a aumentar a exposição à dívida pública nacional, ao mesmo tempo que
se reduz o crédito à economia. Segundo dados divulgados pelo Banco de Portugal, entre Agosto e Setembro, as instituições financeiras privadas investiram mais 1,3 mil milhões, elevando para
31 mil milhões de euros o montante em títulos de dívida.
É o valor mais elevado desde que há dados” (5).
Considerados estes factos e números, conclui-se que
a quase totalidade da dívida conhecida dos bancos privados está hoje já transferida para as contas da dívida pública; o que obriga os contribuintes na sua generalidade a pagá-la. Creio assim ficar respondida a grande questão posta no final do artigo de Raquel Varela: “Se a riqueza de uma sociedade que tem um dos salários mais baixos da Europa e mais longas jornadas de trabalho, de acordo com a OCDE, não vai para a saúde, educação, auxílio mútuo e bem-estar na reforma, vai para onde?
notas:
(1) Portugal está classificado artificialmente como a 43ª economia mais desenvolvida do mundo, apesar da destruição do seu aparelho produtivo nas últimas décadas e da excessiva dimensão do sector terciário em relação ao PIB.
(World Economic Fórum)
(2) A
Alemanha tem sido dominada pela dívida contraída nos termos impostos pela derrota na 2ª Grande Guerra. Até 1999 o Marco alemão foi a moeda de referência para a economia continental europeia, sendo a partir dessa data substituída pelo Euro nessas funções de hegemonia. A avaliação das economias parciais, por países e regiões na União Europeia, é feita por três Agências de Rating de expressão anglo-saxónica que representam os interesses dos accionistas cotados nas praças financeiras de Wall Street (Dólar) e na City de Londres (Libra).
(3) "Secret Fed Loans Gave Banks $13 Billion Undisclosed to Congress"
(Bloomberg)
(4)
Eric Toissaint,
“6 Anos de Branqueamento dos Bancos”
(5)
Jornal de Negócios
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