A carta enviada em Maio de 1948 por Rossellini convidando a actriz sueca Ingrid Bergman, já então uma grande estrela em Hollywood, para protagonizar a "heroína" Karin em Stromboli revela praticamente tudo sobre a mundivisão humanista do realizador:
Cara Senhora Bergman. Esperei algum tempo antes de lhe escrever porque queria ter a certeza daquilo que lhe ia propor. Antes de mais, porém, quero que saiba que a minha maneira de trabalhar é extremamente pessoal. Evito todo o tipo de guião que, a meu ver, limita fortemente o campo de acção. Evidentemente, parto de ideias muito precisas e de uma série de diálogos e de situações que escolho e modifico durante o processo de laboração. Assim sendo, não posso deixar de lhe confessar que a ideia de trabalhar consigo me entusiasma. Há algum tempo, creio que em fins de Fevereiro, percorria eu de automóvel a Sabina, uma zona a norte de Roma, quando, perto da nascente do Farfa, a minha atenção foi atraída por uma cena insólita. Num campo cercado por uma alta rede de arame farpado, algumas mulheres viravam-se como cordeiros numa pastagem. Aproximei-me e percebi que eram estrangeiras, jugoslavas, polacas, romenas, gregas, alemãs, letãs, lituanas, húngaras, que, obrigadas a fugir dos seus países de origem por causa da guerra, tinham deambulado pela Europa, tendo conhecido o horror dos campos de concentração, dos trabalhos forçados e dos saques nocturnos. Tinham sido presas fáceis dos soldados de vinte países diferentes até que foram concentradas naquele campo onde esperavam que as repatriassem. Um guarda ordenou-me que mme afastasse. Eram indesejáveis e era proibido falar com elas. Atrás do arame farpado, na extremidade mais distante do campo, uma mulher loira, toda vestida de preto, estava apartada das outras e olhava para mim. Ignorando as ordens dos guardas, aproximei-me. Ela sabia apenas umas palavras de italiano, ficou vermelha só do esforço de falar. Era da Letónia. Nos seus olhos claros lia-se-lhe um desespero mudo e intenso. Enfiei a mão na barreira de arame farpado e ela agarrou-se a mim como um náufrago que se agarra aos destroços. O guarda aproximou-se com ar ameaçador. Voltei para o carro.
A recordação daquela mulher obsecava-me. Consegui autorização para visitar o campo mas ela já lá não estava. O comandante disse-me que tinha fugido. As mulheres mais velhas deram-me outra versão. Partira com um soldado das ilhas Lipari. Teriam casado e assim ela poderia ficar em Itália. Que tal irmos os dois à procura dela? Ou tentaremos imaginar a sua vida nessa aldeiazinha perto de Stromboli para onde o soldado a levou. Imagino que a senhora não conheça as ilhas Lipari, até mesmo em Itália poucos as conhecem. Infelizmente ficaram tristemente famosas durante o período fascista, porque era para lá que eram mandados os inimigos do regime. São sete ilhas, situadas no mar Tirreno, a norte da Sicilia, e antigamente todas elas eram vulcões.Só um ficou activo, o Stromboli. A aldeia surge aos pés do vulcão, numa baía. Algumas casas brancas, com as paredes cheias de fendas devido aos terramotos. Os habitantes vivem da pesca e do pouco que conseguem cavar da terra árida.
Procurei imaginar como seria a vida da rapariga letã, tão alta e loira, nessa ilha de fogo e cinzas, entre pescadores pequenos e morenos e as mulheres de olhos escuros luzentes, pálidas e definhadas pelas gravidezes. Imaginei a sua incapacidade de comunicar com essa gente de hábitos fenícios, que fala um dialecto rude, em que se misturam palavras gregas, e igualmente a incapacidade de comunicar com ele, o homem que encontrou no campo de Farfa. Olhos nos olhos, aí leram a alma. Nos olhos móveis e inteligentes dele, ela descortinara a sua simplicidade e o seu tormento, a sua força e a sua ternura. Acompanhara-o, convencida de ter encontrado uma criatura fora do comum, um salvador, o refúgio e a protecção depois de tantos anos de angústia e de violência. Ele dar-lhe-ia a possibilidade de permanecer em Itália, nesta terra verde de clima temperado onde o homem não perdeu ainda a sua humanidade e a natureza é feita à medida do homem. Pelo contrário, ela chega a essa ilha selvagem, agitada pelos tremores do vulcão em erupção, onde a terra é escura e o mar parece lama impregnada de sulfato. O homem que vive a seu lado e a ama com uma espécie de fúria selvagem é como um animal selvagem incapaz de lutar pela sua existência, que aceita, placidamente, viver na mais completa miséria.
Até o Deus que as pessoas adoram lhe parece diferente do seu. É impossível comparar o austero Deus luterano que invocava em criança nas igrejas rias da sua terra natal com este, rodeado de santos de todos os tipos. A mulher tenta insurgir-se e escapar a essa vida obsessiva. Mas o mar barra-lhe a fuga por todos os lados. Desnorteada pelo desespero, incapaz de continuar a suportar aquela situação, deixa-se embalar pela esperança de um milagre que venha salvá-la, sem perceber que uma grande mudança ocorrera já dentro dela. De repente percebe o valor da verdade eterna que regula a vida dos homens; percebe o enorme poder de quem nada possui, a extraordinária força que nasce da liberdade, e torna-se uma espécie de S. Francisco. Um intenso sentimento de felicidade jorra do seu coração e ela experimenta finalmente uma enorme alegria de viver.
Não sei se consegui exprimir plenamente aquilo que pretendia dizer. É muito difícil dar corpo às ideias e às sensações cuja vida está ligada à imaginação. Para contar, tenho de ver: o cinema conta com as imagens, mas eu tenho a certeza, a absoluta certeza, de que com a sua ajuda conseguirei dar vida a um ser humano que, através de experiências difíceis e amargas, consegue conquistar a paz e libertar-se de todo o egoísmo, atingindo assim a única verdadeira felicidade concedida à humanidade, a que permite viver de modo mais simples e próximo da criação. Acha que poderá vir à Europa? Seria para mim um prazer convidá-la a vir a Itália para analisarmos juntos e demoradamente o meu projecto. O que é que acha? Acha que devo concretizá-lo? E qual seria para si o melhor período? Desculpe-me se a importuno com todas estas perguntas, mas se soubesse quantas outras coisas gostaria de lhe perguntar ainda! Peço-lhe que acredite no meu sincero entusiasmo. Seu, Roberto Rossellini.
(a carta foi publicada pela editora Mondatori de Milão em “Ingrid Bergman, La Mia Storia, 1983)
(1) Stromboli é uma mistura de realismo social e alegoria religiosa – por outras palavras, a quinta-essência de Rossellini – e, na personagem de Karin, o filme contém o melhor trabalho que Ingrid Bergman jamais fez. (ler mais)
(2) A quimica entre a actriz e o realizador foi imediata e total. A ponto de Ingrid aparecer grávida de Rossellini , mesmo sendo casada com o médico sueco Petter Lindström. Como Rosselini também era casado, a união causou enorme polémica. Ambos abandonaram as respectivas famílias para viverem juntos. Essa paixão fez com que a actriz fosse acusada de adúltera e de mau exemplo para as mulheres norte-americanas. O influente senador Edwin Johnson, do Colorado, denunciou o comportamento de Ingrid como “um ataque contra a instituição do casamento” e descreveu-a como uma “poderosa influência do mal”, estigma que a levou a ficar anos sem filmar nos Estados Unidos (ler mais)
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