Gonçalo M. Tavares
o Chefe detestava geografia, economia, literatura, quimica, sociologia, engenharia, matemática, física, e ainda todas as ciências inventadas depois e antes de Cristo. O que ele apreciava era o instinto.
- o Instinto, percebe!
O Auxiliar percebia que o Chefe queria que ele não percebesse. Por isso abanava a cabeça.
- Você não sabe o que é o instinto?
O Auxiliar abanou de novo a cabeça, ainda com mais força. Era dos bons.
O Chefe gostava de explicar – qualquer coisa, mesmo o inexplicável – e os Auxiliares gostavam do Chefe. Este não tinha muitas outras oportunidades. Investia pois em direcção aos Auxiliares como o touro, em certas cerimónias populares, investe contra os homens feridos e aleijados que ficam para trás.
- o Instinto (disse o Chefe completamente envolvido na sua dissertação) o instinto é algo que nasce aqui (e apontava para o estômago) e sobe, sobe (e lá acompanhava com gestos) até chegar aqui! (e a sua mão direita agarrava a própria garganta.)
- Aqui, percebe!
- À garganta... – murmurou o Auxiliar, como se lhe tivessem acabado de revelar um segredo com dois milénios.
- Mais do que à garganta – especificou o Chefe (ele especificava muito bem) – o instinto sobe até ao meu vocabulário, e todo o meu vocabulário fica assim como que possuído por uma força invulgar.
- Uma força... - disse o Auxiliar.
- ...que nenhuma inteligência normal consegue alcançar ou perceber.
- Exactamente. Nem uma inteligência vulgar nem uma inteligência invulgar: a inteligência não é uma ferramenta capaz de entender os meus discursos. Eu falo para o povo!
- Viva o povo! – gritou o Auxiliar.
- Viva!
in “As Ficções do Sr. Kraus”
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