Rio de Janeiro (1). Em 1996 a história de Valongo emergiu do subsolo de uma forma abrupta. Um casal de moradores da Rua Pedro Ernesto no bairro da Gamboa decidiu fazer obras na casa construida no século XVIII; durante as escavações encontrou no meio do entulho centenas de fragmentos de ossos misturados com cacos de cerâmica e vidro. Eram vestígios do até então desconhecido cemitério dos Pretos Novos. Ali, duzentos anos antes, enterravam-se em aterros os escravos recém chegados de África e mortos antes de serem vendidos. O maior entreposto negreiro das Américas, o Mercado de Escravos de Valongo, desapareceu do mapa sem deixar vestígios. A sua localização é ignorada nos mapas das ruas, na direcção da Praia Mauá numa ladeira chamada de Morro de Valongo, sem nenhuma placa, monumento ou identificação.
Por alturas da chegada da Corte portuguesa ao Brasil, navios negreiros despejavam no Mercado de Valongo entre 18.000 a 22.000 homens, mulheres e crianças por ano. Permaneciam em quarentena, para serem engordados e tratados das doença. Quando adquiriam uma aparência mais saudável, eram comercializados da mesma maneira que animais de carga ou de pecuária.
O desembarque, a compra e venda de escravos faziam parte da rotina da colónia havia quase três séculos, face à dificuldade de obter mão de obra indígena. A “mercadoria” destinava-se a alimentar as minas de ouro e diamantes, os engenhos de cana de açúcar e as lavouras de algodão, café e tabaco. Segundo um relato do espanhol Juan Francisco de Aguirre, os 30 monges do Convento de São Bento, então o mais rico do Brasil, "viviam dos rendimentos proporcionados por “quatro engenhos de açúcar, que empregam 1.200 escravos e de rendas de casa no Rio”.
Ao passar pelo local em 1823 a viajante inglesa Maria Graham registou no seu diário uma visão confrangedora: “Hoje vi o Valongo. Quase todas as casas desta longuíssima rua são um depósito de negros cativos. Passando pelas sua portas à noite, vi na maior parte delas bancos corridos colocados rente às paredes, nos quais filas de jovens criaturas estavam sentadas, com a cabeça rapada, os corpos macilentos, tendo na pele sinais de sarna recente. As pobres criaturas jaziam sobre tapetes, evidentemente muito fracas para se sentarem”
O cônsul inglês James Henderson descreveu assim o desembarque dos escravos no Rio de Janeiro: “ Os navios negreiros que chegam apresentam um retrato terrível das misérias humanas. O convés é abarrotado por criaturas, apertadas umas às outras tanto quanto possível. As suas faces melancólicas e os seus corpos nus e esquálidos são o suficiente para encher de horror qualquer pessoa não habituada a este tipo de cena. Muitos deles, enquanto caminham dos navios até aos depósitos onde ficarão expostos para venda, mais se parecem com esqueletos ambulantes, em especial as crianças. A pele, que de tão frágil parece ser incapaz de manter os ossos juntos, é coberta por uma doença repulsiva, que os portugueses chamam sarna” (...)
“Quando uma pessoa quer comprar um escravo, visita os diferentes depósitos, indo de uma casa a outra, até encontrar aquele que lhe agrada. Ao ser chamado, o escravo é apalpado em várias partes do corpo, exactamente como se faz quando se compra um boi no mercado. Ele é obrigado a andar, a correr, a esticar os braços e pernas bruscamente, a falar, a mostrar a lingua e os dentes. Esta é a forma considerada correcta para avaliar a idade e julgar o estado de saúde do escravo”
"Assim que o comprador entra o vendedor faz um sinal e todo o harém se levanta e começa a gritar e a dançar, como se para provar que têm pulmões e que compreendem à maravilha a servidão. Infeliz é aquele que não imita os seus companheiros, o chicote bate-lhe no flanco e pedaços de carne negra voam pelo ar" - J.Arago, 1817.
Entre os séculos XVI e XIX, cerca de 10 milhões de escravos africanos foram vendidos para as Américas. O Brasil, maior importador do continente, recebeu quase 40 por cento desse total, algo entre 3,6 milhões e 4 milhões de cativos. Com a chegada da Corte e o aquecimento dos negócios na colónia, o tráfico aumentou de forma exponencial. O número de escravos desembarcados no Rio saltou de 9.689 em 1807 para 23.230 em 1811 – um aumento de duas vezes e meia em quatro anos. A média anual de navios aumentou de 21 para 51 - o trabalho escravo tinha-se tornado um deus económico - “tentar suprimir o tráfico era uma actividade vã” notou o historiador Alan K. Manchester. Os lucros do negócio eram astronómicos; um escravo comprado em Luanda por 70.000 réis era revendido no Distrito Diamantino em Minas Gerais por 240.000 réis. Só em impostos o Estado recolhia cerca de 80.000 libras esterlinas por ano com o tráfico negreiro.
Era um negócio arriscado. Cerca de 40% dos negros escravizados morriam no percurso entre as zonas de captura no interior do Congo, Angola ou Moçambique e o litoral e depois durante a viagem marítima (em navios de companhias como a Grão Pará e Maranhão). A bordo eram considerados uma carga como outra qualquer; tinham menos espaço que um homem dentro de um caixão segundo relata o autor de “Black Slaves in Britain”: “temendo perder toda a carga antes de chegar ao destino, o capitão Luke Collingwood decidiu lançar ao mar todos os escravos doentes ou desnutridos. Ao longo de três dias, 133 negros foram atirados da amurada, vivos. E depois o armador pedia uma indeminização à seguradora por carga pedida”. Da costa atlântica até ao Brasil a viagem durava entre 33 a 43 dias e do Indico chegava aos 76 dias, quando não havia naufrágios, que eram frequentes. Por fim, ao chegar aos depósitos, como os do Mercado de Valongo, entre 10 a 12% pereciam antes de serem vendidos. Em resumo, de cada 100 negros capturados em África só 45 chegavam ao destino final. Significa que, de dez milhões de escravos vendidos nas Américas, quase outro tanto teria morrido no percurso, num dos maiores genocídios da história da humanidade.
a melhor prova da teoria de Darwin, que as espécies
evoluem ultrapassando e adaptando-se inexoravelmente
às vicissitudes do meio, está na mestiçagem que
desfila no Carnaval do Rio, como este belo exemplar:
evoluem ultrapassando e adaptando-se inexoravelmente
às vicissitudes do meio, está na mestiçagem que
desfila no Carnaval do Rio, como este belo exemplar:
(1) Dados respigados do livro de Laurentino Gomes “1808”
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