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sexta-feira, agosto 24, 2007

As causas da Crise Crónica - a Desproporção entre Produção e Consumo

Tom Thomas

A produção pode dividir-se arbritariamente em dois grandes ramos: a produção dos meios de produção (sector I) e a produção de bens de consumo (sector II). Mas é, evidentemente, este consumo final, essencialmente o das massas populares, que determina em última instância o equilibrio do conjunto, uma vez que a produção do sector I não pode encontrar a sua finalidade em si própria.
Ora o capital, necessariamente, desenvolve mais a produção geral do que o consumo final. Adiante diremos porquê, mas os lamentos dos capitalistas sobre a dificuldade de escoarem os seus produtos, as fábricas fechadas apesar de estarem em perfeito estado de funcionamento, ou os stocks de mercadorias não vendidas, destruídas ou vendidas ao desbarato, mostram-no com toda a evidência. O subconsumo é invocado com frequência como explicação para a crise. Nomeadamente pelos mistificadores keynesianos, que daí deduzem que bastaria aumentar as despesas públicas e a massa assalariada, ou mesmo só a massa salarial, para o consumo crescer e a produção também. Assim convergiriam harmoniosamente os reais interesses do capital e do trabalho, graças ao crescimento da dívida e da massa monetária em circulação!
Se quisermos ser sérios, no mínimo, não podemos falar de subconsumo sem falar de capital. Em absoluto, aquele não é um fenómeno específico deste. Mas o facto é que, antes dele, não havia destruições maciças de meios de trabalho e de mercadorias, a não ser nas guerras. Os meios de produção eram demasiado rudimentares, a produção era demasiado fraca e sensível ao mínimo imprevisto climático: donde a pobreza e as frequentes fomes. Esta penúria não era criada pelo sistema social; este apenas a agravava com os gastos sumptuários das camadas ociosas e parasitárias. No capitalismo dá-se o inverso. O subconsumo não é devido à insuficiência da capacidade produtiva; há, bem pelo contrário, consideráveis capacidades produtivas não utilizadas. Não é tanto o consumo excessivo das camadas superiores nem mesmo as despesas estatais monstruosas que reduzem o consumo das massas, mas sim o próprio modo de desenvolvimento do sistema, que induz uma contradição entre a produção e o consumo em geral, abrangendo todas as classes. O paradoxo monstruoso é tratar-se de um subconsumo puramente derivado da sua capacidade poara produzir cada vez mais mercadorias, cada vez mais variadas, com cada vez menos trabalho por unidade produzida. O paradoxo está em que, quanto mais ele produz assim, em massa e mais barato, maiores dificuldades tem para vender tudo, apesar de estarem longe de satisfeitas as necessidades de milhares de milhões de individuos, mesmo as mais elementares.
Como se vê, já não se trata aqui, de desproporções quantitativas entre ramos de profissões diferentes, provocadas pela cegueira anárquica dos produtores privados. E também não se trata do facto de se produzirem demasiados valores de uso, já que, no seu conjunto, as necessidades não estão satisfeitas. O problema é que se produzem demasiados valores de uso num sistema social que só os reconhece como valores de troca. Produzem-se demasiadas mercadorias sob forma de valores de troca, ou seja, mercadorias que se pretende vender a um preço que realize uma mais-valia, isto é, trabalho não pago. É essa mais valia que, ao apresentar-se como capital adicional, constitui o nó da relação sobreprodução- subconsumo, própria do capitalismo.
Aqui vamos introduzir na análise das crises uma determinação concreta, que é suplementar e fundamental em relação ao esquema mais abstracto da troca mercantil, M-D-M (mercadoria-dinheiro-mercadoria). É a determinação da troca por dinheiro, D-M-D, a qual se torna necessariamente uma troca para obter mais dinheiro, D-M-D2 (se não , não valeria a pena arriscar o D inicial), primeiro no comércio mercantil, depois no modo de produção capitalista por meio da extorção do trabalho não pago (a mais-valia), que é a diferença entre a quantidade de trabalho social fornecido pelo operário e a quantidade cujo equivalente ele recebe sob a forma de salário. Esta mais-valia aparece concretamente, como sabemos, sob a forma de lucro. E a taxa de lucro, que é a relação entre a mais valia e o capital investido (que se designa Mv/C), torna-se “a força motriz da produção capitalista e, nesta, só se produz o que pode ser produzido com lucro”. Isto toda a gente o sabe, e tem como resultado que, se o lucro cair, a produção cai também. A crise manifesta-se, portanto, sempre como a queda da produção e do lucro, o que é a mesma coisa, pois se trata de uma produção destinada a obter lucro.

Assim, no fenómeno que nos interessa (sub-consumo ou sobre-produção), a mistificação consiste em isolá-lo daquilo que é a finalidade mesma da produção capitalista: o lucro. Assim se oculta o facto de a sobreprodução ser, apenas, uma sobreprodução de mercadorias que não podem ser vendidas com lucro, com a realização de mais-valia, ou seja, da quantidade de trabalho gratuito que elas contêm. Marx resumiu muito bem a natureza relativa do fenómeno: “Não se produzem demasiadas subsistências proporcionalmente à população existente. Pelo contrário. Produzem-se demasiado poucas para satisfazer decente e humanamente a massa da população. Mas produzem-se periodicamente demasiados meios de trabalho e subsistências para os poder fazer funcionar como meios de exploração dos operários com uma certa taxa de lucro”

Na realidade, o problema que se apresenta como uma desproporção entre produção e consumo é, no fundo, o seguinte: ele manifesta que a unidade inevitável produção-consumo só pode realizar-se, no capitalismo, quando sujeita à determinação fundamental deste sistema, o lucro. Produção e consumo são as duas faces da mesma moeda que, por simplificação, se chama processo de produção. Mas se considerarmos que se trata, não de produção em geral, mas de produção de mais valia, a qual é apropriada pelo capital e vai juntar-se ao capital inicial reproduzido para se integrar num novo ciclo de valorização, então percebe-se que este processo não diz respeito ao consumo em si mesmo, às necessidades das pessoas, mas é um processo de acumulação. A acumulação constitui o princípio de reprodução do capital, do seu desenvolvimento, o qual é necessariamente um crescimento conjunto da produção e do consumo. Mas não ao mesmo ritmo. Porque este movimento inexorável da acumulação capitalista é o alicerce dos mecanismos gerais que conduzem, efectivamente, a uma sobreprodução de mercadorias, de meios de produção, numa palavra, de capital sob as suas diversas formas, e, ao mesmo tempo, a um subconsumo relativo, a uma pauperização relativa (que se pode tranformar em miséria absoluta) das massas populares.

Neste ponto da explicação, podemos já perceber que a possibilidade concreta da crise de sobreprodução é induzida pela necessidade que todo o capitalista tem, não apenas de limitar o mais possivel a massa salarial, e portanto o consumo operário, a fim de produzir o máximo de mais-valia, mas, além disso, de reconverter essa mais-valia em meios de produção suplementares, em vez de a consumir ele próprio (supondo que poderia gastá-la toda, mesmo se quisesse). Se o capitalista não trabalhar pela existência do capital, acumulando-o, a concorrência virá lembrar-lhe que tem de o fazer. Pois, se não aumentasse incessantemente a produção, se não conseguisse aumentos de produtividade investindo nas tecnologias com maior desempenho, se não mantivesse a maior taxa de lucro possivel, desapareceria. O capital que ele representa iria investir-se noutro sítio em melhores condições de rentabilidade. Ou então seria desvalorizado e comprado a baixo preço por concorrentes mais poderosos. Ou, ainda, seria simplesmente eliminado, destruído. É por isso aliás, qua a análise das relações concretas entre produção e consumo tem de levar em conta a concorrência, que obriga todo o capitalista, ao mesmo tempo, a desenvolver ao máximo as forças produtivas e a diminuir o mais possivel a massa salarial.
Ao fazê-lo, cada capitalista contribui activamente para o drama do capital social, geral, porque se empenha em diminuir continuamente a parte do trabalho vivo relativamente à das máquinas, no processo de produção que dirige. Bem gostaria ele que os outros o não imitassem, para que os operários deles consumissem mais os seus produtos. Mas não há volta a dar-lhe: todos eles têm de agir assim e o policiamento da concorrência encarrega-se de lho lembrar. A diminuição da parte do produto social que reverte para os salários, relativamente à que reverte para o capital (reprodução, ou amortização, do capital fixo acrescentada com a mais-valia) é uma observação de que os economistas de esquerda usam e abusam para criticar o “liberalismo” (expressão muitissimo vaga, que está na moda para eles condenarem, não o capitalismo, mas tão só a sua má gestão pelo Estado). Todavia, é evidente que, com ou sem liberalismo, quanto mais crescer a parte do capital constante no valor produzido, mais tem de aumentar a parte do produto que lhe caberá, seja para o reconstituir, seja para manter a taxa de lucro. O que foi perfeitamente descrito por Marx: “Com a progressão da produtividade do trabalho social, e uma vez que esta é acompanhada pelo crescimento do capital constante, uma parte relativamente crescente do produto anual do trabalho caberá também ao capital enquanto tal; daí resulta que a propriedade do capital (independentemente do seu rendimento) aumentará constantemente, e que a prporção de valor criada pelo operário individual (e mesmo pela classe operária) diminuirá cada vez mais em relação ao produto do seu trabalho passado, que agora se lhes apresenta sob a forma de capital”
Esta tendência manifesta-se de forma constante, uma vez que a busca permanente de ganhos de produtividade é evidentemente acompanhada por um crescimento mais rápido do capital fixo (as máquinas) e do consumo de matérias-primas do que o do capital variável, o trabalho vivo. Não há, portanto, nada que se possa considerar anormal, pelo menos no sistema capitalista, em factos tais como “a parte dos salários na riqueza nacional caiu de 76,6% em 1980, para 68% nos dias de hoje”. O contrário é que seria anormal – e podemos estar certos de que não acontecerá, sejam quais forem os votos dos nossos críticos de salão pela melhoria da parte que cabe aos salários.

Mas esta constatação é apenas a manifestação de um crescimento das forças produtivas mais rápido do que a massa salarial. Devido à corrida de cada capitalista atrás dos ganhos de produtividade e do aumento de produção na mira de maximizar os seus lucros, o capitalismo induz uma tendência para o desenvolvimento ilimitado da produção mas, ao mesmo tempo, para um crescimento menor (senão mesmo uma possivel diminuição, a partir de certo nivel de mecanização) do consumo final – e também, por isso mesmo, como reflexo, do consumo de meios de produção. Estes últimos ficam periodicamente parados, sem uso, ou então em excesso, e desvalorizados enquanto capital, ou são até enviados maciçamente para a sucata quando das crises (em que se dá uma destruição brutal de meios em bom estado de funcionar, o que é diferente da renovação progressiva devida ao desgaste ou aos progressos técnicos). Donde esta observação de Marx: “A razão última de toda a verdadeira crise é sempre a pobreza e a limitação do consumo das massas, perante a tendência da produção capitalista para desenvolver as forças produtivas como se o seu único limite fosse a capacidade de consumo absoluta da sociedade”.
Esta citação foi usada mil vezes por todos aqueles que pretendem servir-se de Marx para explicar a crise apenas como consequência da avidez dos capitalistas que se recusam a aumentar os salários, impedindo assim a reactivação do consumo, do investimento e do emprego. Mas esta é a estupidez de sempre, que pretende separar o subconsumo da relação causal que o liga ao modo de produção. De resto, Marx já respondera a este género de “marxistas” que é pura tautologia (1) dizer-se que as mercadorias se venderiam melhor se houvesse mais compradores que as pudessem pagar. E acrescentava que é tanto mais estúpido pretender que “este inconveniente (a falta de compradores) se ultrapassaria com o crescimento do seu salário (da classe operária)”, quando “basta reparar que as crises são sempre preparadas precisamente por um periodo de subida geral dos salários... Do ponto de vista destes cavaleiros que terçam lanças em favor do “simples” (!) bom senso, este periodo deveria, pelo contrário, afastar a crise... A produção capitalista implica condições que nada têm a ver com a boa ou má vontade”.
Acentuemos, portanto, uma vez mais, que, inclusivé para Marx, “a limitação do consumo das massas” só pode ser considerada “a causa última” da crise à luz da (ou relativamente à) tendência ilimitada do capitalismo para o desenvolvimento das forças produtivas. Que essa causa última decorre do desenvolvimento paradoxal das forças produtivas, o qual, fundado na produção de mais valia, choca de modo contraditório com o próprio meio que utiliza para aumentá-la: os ganhos de produtividade obtidos pela substituição de trabalho vivo por trabalho morto, as máquinas cada vez mais automatizadas.

Em suma, o termo “causa última” remete-nos ao mesmo tempo para a sobreprodução de meios de produção e para o subconsumo final que inevitavelmente o acompanha. Remete-nos, pois, para a relação de apropriação de mais-valia, para o modo de existência do capital, de cada capital em particular, como sendo a corrida para a acumulação que tal relação implica. O escândalo reside nesse subconsumo porque, contrariamente aos periodos precedentes, ele não tem estritamente nada de natural; ao contrário, cresce ao mesmo tempo que a produção de riquezas e a facilidade em as produzir. Assim, a crise deve suscitar, não a codenação do desenvolvimento da produção resultante do rogresso cientifico e tecnológico, mas sim a do subconsumo, porque este é uma criação puramente artificial. Por isso Marx lhe dá o relevo que dá. Porque, embora relacionado com a sobreprodução, é o subconsumo que condena o capitalismo no plano moral – e sobretudo, na prática, ao alimentar a luta do proletariado. Ao passo que, pelo contrário, o desenvolvimento das forças produtivas, da ciência e das suas aplicações tecnológicas é o seu lado positivo (2) – uma condição potencialmente realizada para abolir o subconsumo, ou seja, para abolir a relação de apropriação privada que está na origem de tudo isto, e desta contradição produção-consumo em particular.

Notas:
(1) “Tautologia” – Redundância, ou pleonasmo, ou a mesma ideia expressa por palavras diferentes.
(2) Em toda esta passagem, o desenvolvimento das forças produtivas só é examinado na generalidade. Escusado será dizer que o desenvolvimento tem de ser posto em causa, tanto nas suas orientações e aplicações, muitas vezes nefastas, como nas suas modalidades sociais – a alienação do trabalho de execução perante, em particular, os poderes intelectuais
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