Contos Infantis e Realidade
“sendo os homens aquilo que são, deus só podia ser mau (…) tanto tempo sem dar noticias e agora aqui está de novo, vestido como quando nos expulsou do paraíso (…) és responsável pela primeira morte, por teres desprezado injustamente o sacrifício de caim (…) és sanguinário, caprichoso, sádico ” (José Saramago)
¿Onde está o Mal? (Andrea Blanqué, escritora uruguaia)
Explicar a uma criança o que é o Mal é uma das tarefas mais difíceis que um progenitor pode ter diante si. Todas as crianças começam por ir sabendo o que é o Mal, à medida que vivem e crescem. Toda a criança pergunta aos seus pais o porquê e exige uma explicação do adulto sobre a inversão de valores que o mundo sofreu face ao que se esperaria – da justiça – que resulta perante os seus olhos no contrário daquilo que seria de esperar.
Um dia calhou-me ser levada a um McDonald com a minha filha afim de comer um hambúrguer e nesse preciso instante uma miudita com a face marcada por uma golpe acercou-se de nós a pedir uma moedinha. Na porta do edifício do avô havia um contentor para o lixo que os moradores despejavam fora de horas. Uma vez a minha filha e eu observámos o ritual de um velhote de barba amarelada almoçando às 5 da tarde retirando sobras de um desses sacos deitados fora e devorando os restos de comida. A tudo isto a minha filha me perguntava o porquê, e quando o fazia olhava-me com olhos incrédulos, e eu então complicava-me numa explicação complexa ou então contestava com interjeições e monossílabos, ou somente a abraçava a tratava de celebrar junto com ela a angústia que produz a injustiça. Assim revivi a velha tristeza, o horror original que eu mesmo sinto desde há quarenta anos perante a pobreza do mundo. A todos os meninos se formam nós na garganta, quando começam a conhecer a pobreza. E paralelamente, um menino que começa a viver fá-lo escutando histórias, contos, literatura. Um menino que lê velhas histórias começa a sentir na pele o mal, começa a sentir a necessidade de olhá-lo de olhos abertos, pensar sobre ele.
No século XXI, os velhos e adorados contos de fadas falavam à minha filha do Mal do mundo que continua a doer, assim como décadas atrás me aconteceu a mim. Tenho revivido com ela a fome de Hansel e Gretel, quando os pais abandonam os pequenos heróis no bosque porque já não tinham um bocado de pão para lhes dar de comer. Revivi a sombra do infanticídio nesse conto, e também no relato terrível do Flautista de Hamelin, onde políticos fraticidas liquidam as jovens gerações por acção da sua corrupção e ganância. Passamos muito tempo juntas, lendo em livros repletos de desenhos o que significa o trabalho infantil: uma boa quantidade de meninas dos contos de fadas realizam penosas tarefas domésticas. Acarretam baldes de água, esfregam roupas finas, vestem outras andrajosas. São meninas que trabalham de sol a sol, que se não o fizerem são violentamente castigadas, como as meninas que habitam nos subúrbios das nossas cidades.
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Os contos de fadas vêm da Europa: hoje a Europa é o mundo dos ricos, o palácio dourado onde todos os andrajosos do terceiro mundo querem chegar mediante alguma varinha mágica à terra onde os os ratos se convertem em criados de libré. Até há quase cinquenta anos e durante séculos na Europa houve fome e meninos desnutridos, como agora ainda há por todos os cantos da América Latina. Hoje os europeus já se esqueceram da fome, porém deixaram-nos os seus contos, legaram-nos os seus livros, milhares de páginas que falam de dor. A literatura é a cicatriz dos povos que sofreram a miséria humana. Sem dúvida, não é de crer que a literatura deva impor-se a si mesma por falar de dor. Não é necessário. A dor se filtrará através dela, sempre, como um pesadelo num sono repousante, ou como a febre que se instala no corpo.
Penso nas minhas personagens, nos personagens dos meus contos e novelas que são da classe média e da classe média baixa. Nenhuma das minhas histórias se passa num condominio fechado. Creio que não poderia escrever uma novela onde o protagonista fosse o filho de um grande financeiro. Não creio que o consiga. Talvez requeira um esforço de hedonismo que não me permite fabricar esse ambiente. Não o farei. Não me creio inocente nem culpada, simplesmente escrevo. Logo, a questão da verossimilhança é um assunto sagrado. Mas se escrevo sobre a miséria atroz que pensarão os leitores? Há uma resposta óbvia, transparente. Não é forçoso escrever sobre o mundo da dôr, porque a dôr está aí, antes de nos pormos a escrever sobre nada. Ela chega e humedece tudo aquilo que cada um faça, percebe-se, ouve-se, apalpa-se. Nada escapa à dor. As minhas personagens vêem-na passar, vêem o mal, ele está aí e é impossivel ignorá-lo quando qualquer de nós sai às ruas das nossas cidades.
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Realidade - voltou o mau tempo:
"Trichet apela à redução dos défices na zona euro"
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