as histórias do quotidiano que já estavam escritas, face às tentativas do novo regime para as re-escrever como "grandes narrativas".
(…) estávamos de resto desabituados de qualquer actividade desse tipo. No liceu, a única manifestação colectiva era, tradicionalmente, uma greve comandada pelos dos últimos anos, a socos e pontapés nos pequenos (e com a já sabida invasão do pátio dos “pequenos”, para esse efeito), por ocasião do 11 de Novembro, Dia do Armistício, e que não era feriado. Ninguém pensava nos mortos da Grande Guerra, e não se tratava de uma afirmação de pacifismo: era apenas um costume pelo qual, quanto mais velhos, obrigávamos os mais novos a faltar às aulas naquele dia, tal como, anos atrás, haviam feito connosco. De politica, nenhum de nós sabia nada. Era como se tudo o que vinha nos jornais se passasse a séculos e milhares de quilómetros de distância. As nossas famílias não se interessavam por politica, senão em termos de “Ordem”, e louvavam-se da paz que o governo impusera a um país em desordem. Qual seria esta desordem e como era a ordem que o governo impunha, nós não fazíamos grande ideia. Os jornais falavam às vezes do caos administrativo e financeiro do passado, enaltecendo as providências do governo. Este, a julgar pelos jornais, ocupava-se em inaugurar obras públicas – lanços de estrada, chafarizes, casas do povo de não sei donde -, a propósito das quais invariavelmente eram recordados Afonso Henriques, Nun`Alvares, Vasco da Gama, e outros heróis menores.
Mas as trancendências do orçamento e da dívida pública ultrapassavam de muito as especulações das nossas famílias da média ou da alta burguesia. A “ordem” era o contrário de haver “revoluções”. Eu não me lembrava pessoalmente dessas revoluções do passado, que, na minha casa, se consubstanciavam no escândalo de uma criada, em 1910, quando do 5 de Outubro, ter assomado entusiasmada à varanda, para saudar com vivas os revolucionários que passavam. Minha mãe que não era monárquica nem coisa nenhuma, repusera a “ordem”, despedindo-a, o que, suponho, a família considerara um acto de coragem, equivalente ao das matronas ilustres como Dona Filipa de Vilhena. Na minha infância, ainda houvera “revoluções” que eram, para mim, inseparáveis de passarmos dois ou três dias no interior do quarto interior e escuro da casa, deitados no chão, “por causa das balas perdidas”, enquanto meu pai e o vizinho de baixo, na escada, discutiam de onde eram os tiros que se ouviam: a Penha de França, a Graça, a Ajuda, etc., sem chegarem a outro acordo que o resultante de, a um estrondo maior, meu pai voltar para dentro, e recolher-se no quarto escuro, chamado pelos clamores lancinantes da minha mãe. Depois, as revoluções tinham efectivamente acabado, ou abortavam longe e em silêncio, esmagadas suplementarmente pela severidade dos periódicos (que meu pai lia alto, com grandes assentimentos de cabeça) e por grupos de pesvadores da Nazaré ou lavradeiras do Minho, que, com os seu trajes típicos, vinham ao Terreiro do Paço, com os regedores na frente e a banda de música, oferecer flores aos salvadores da ordem, que se juntavam todos numa janela a agradecer, como eu e outros, escapados ao liceu, havíamos ido ver uma vez. Mas, de um modo geral, a minha família toda abstinha-se de “politicas”, coisa que era reservada a uma espécie humana que nela não tinha representação: os “políticos”, olhados todos com irónica displicência, mesmo que fizessem parte do grupo dos mantenedores da ordem tão desejada.
A família reprovara mesmo, e escamoteara como uma doença secreta, o telegrama de aplauso, que um tio meu (num momento de entusiasmo subsquente à última revolução que havíamos passado debaixo das camas) mandara ao governo. Só muitos anos mais tarde descobri que um irmão da minha mãe, que morrera jovem e tuberculoso, havia sido – apenas nas leituras de traduções baratas – “anarquista!”. Minha avó materna jamais falava nele, e creio que não acreditara nunca em que ele tivesse morrido mordido, nos pulmões, pelo bacilo de Koch, mas, na cabeça, pelo de Kropotkine. Claro que, ainda no liceu, o “Anschluss” fora discutido e a Guerra da Etiópia também. Mas as ascenção de Hitler, cujo nome começava a ser conhecido, não parecia, mesmo no noticiário dos jornais, como uma ameaça às democracias, mas sim como uma perturbação da “ordem” estabelecida pelos “Aliados” na Primeira Grande Guerra. E Mussolini era muito louvado oficialmente, ainda que com discrição, pela autoritária organização do progresso de Itália. Todavia a Guerra da Etiópia não era o mesmo que o “Anschluss”…
Que se unissem povos da mesma língua e da mesma raça, não nos parecia coisa por aí além. Que se atacassem o Negus e os “rases”, que o noticiário apresentava habilmente na contradição de serem uns selvagens quase antropófagos, que se recusavam às delicias do progresso, em nome de uma independência que datava desde Salomão e a Rainha do Sabá (e todos nós conhecíamos, de nome, muito mais a Etiópia do que a Áustria, já que esse país figurava nas pompas onomásticas dos reis de Portugal, que sabíamos de cor desde a escola primária), eis o que era, sem dúvida, uma agressão. Não o eram, é claro, as campanhas de ocupação africana, que andavam então na moda oficial: os italianos não tinham sido, na verdade, os descobridores da Etiópia, como nós o havíamos sido de tudo e da Etiópia também. Era, de resto, nestes termos de passado histórico que tudo era avaliado; e, a tal ponto as coisas nos eram distanciadas, que a República fora proclamada em Espanha, sem que déssemos por isso. Para mim, a Espanha era meramente um nome, e a multidão de espanhóis que costumavam veranear na Figueira da Foz, e atroavam com a sua agitação e a sua gritaria as ruas dos “cafés”.
E, no meu tempo, já as espanholas haviam sido batidas, no campo da prostituição, pela concorrência nacional. Na Figueira, elas não faziam vida, porque os compatriotas logo tratavam de as repatriar, por causa do bom nome da Espanha, a menos que fossem as bailarinas do Casino, que essas, muito lambidas e com sapateados, exemplificavam, para admiração dos portugueses, a grande arte da Hispânia. Conheci uma vez no “Pasapoga” de Madrid, uma dessas repatriadas da Figueira: todos os anos ia passar o Verão com a família, graças ao pudor patriótico (…) Jorge de Sena, "Sinais de Fogo", Obras Completas, Guimarães Editores, 2009
"A História é uma espécie de ecrã, sobre o qual projectamos as nossas visões do futuro. É um filme animado, à custa dos nossos medos e aspirações" (Carl Becker)
O actual revivalismo monárquico que certos “historiadores”, como Rui Ramos, vêm trabalhando, tem tanta legitimidade como o poder que foi transmitido directamente do fascista Francisco Franco para o Rei Juan Carlos da Casa de Bourbon. Através do historiador Manuel Rós Aguda viemos finalmente a saber, passados 60 anos, que a Espanha franquista depois de ter assinado o Pacto Tripartido com o regime Nazi alemão, se propunha invadir Portugal (com quem tinha assinado outro pacto de não agressão). Talvez daqui a outros 60 anos se venha a saber da credibilidade, quem é e para que interesses trabalha Rui Ramos. Quanto ao fantoche que empresta a efígie à causa, dito o rei sem trono Duarte Pio, ele próprio outro prolegómeno da casa dos Bourbon, esse já leva obra da qual o podemos conhecer perfeitamente bem. De facto, o candidato a bobo sem Corte é autor de um opúsculo laudatório do Beato Nuno, onde se pode ler esta pérola:
“Quando passava de Tomar a caminho de Aljubarrota, a 13 de Agosto de 1385, D. Nuno foi atraído a Cova da Iria, onde, na companhia dos seus cavaleiros, viu os cavalos do exército ajoelhar, no mesmo local onde, 532 anos mais tarde, durante as conhecidas Aparições Marianas, Deus operou o Milagre do Sol»
(“D. Nuno de Santa Maria - O Santo”, ACD Editores, 2005)
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