Shylock, o “judeu” de Veneza, foi o primeiro banqueiro que conhecemos, bem como, noutro registo, Otelo “o mouro”, pela pena do repórter de excepção que dá pelo clássico nome de William Shakespeare (1564-1616). Mouro ou Judeu, na época não havia entre ambos grande distinção étnica, concretizando-se a diferença mais pela idiossincrasia das práticas. Reza o “deuterónimo”, em tradução livre, "que não poderás emprestar ao teu irmão com juros, mas ao estrangeiro poderás esfolá-lo tanto quanto conseguires". O facto dos dois dramas decorrerem naquela cidade não foi uma mera coincidência, mas sim por Veneza ser nesse tempo o terminal no continente europeu da linha da comércio com o Levante, a secular Rota da Seda reportada por outro veneziano famoso, Marco Pólo, o caminho milenar percorrido pelas caravanas através dos diversos impérios euro-asiáticos. O comércio com o Oriente sempre foi fonte de prosperidade, senão da importação de mitologias – vejam-se as cúpulas da Basílica na Piazza de São Marcos (construída entre 828 e 1245), são muçulmanas – contando-se até ser o mito do apóstolo Marcos ter sido importado e transmitido sob a forma de conto maravilhoso pelas ruas por um sapateiro migrante semita, como forma hábil de extorquir alguns trocados aos passantes (como faria depois Cervantes ao surripiar no bairro mouro de Toledo os originais que romanceou e tornaram o Quixote imortal (pela ocidentalização).
O primeiro “Gueto” europeu (Getto, traduzido do dialecto longobardo significa “Fundição”) aparece quando migrantes semitas vindos de norte pela porta de Trieste procuraram refúgio em Veneza cerca do século IX. Os Longobardi são descritos por Gaio Cornelio Tacito no ano 98 na obra Germanorum (1) como uma das tribos bárbaras procedentes de fora dos limites do Império romano. O termo “judeu” aparece pela primeira vez em documentos no ano de 945 e depois em 992 proibindo os capitães venezianos de facultarem o acesso a “judeus” a bordo dos seus navios. Até ali a designação de estrangeiros oriundos de Oriente seria naturalmente a de “mouros”. O território adquiriu o nome do termo grego Venetikà – passando a ser denominado Venezia marittima sob o domínio de Bizâncio a partir da reconquista no ano de 554 – ficando politicamente dependente do Esarcato de Itália com séde em Ravenna até ao século VI. No ano 603, sob o reinado da rainha Teodolinda os Longobardos convertem-se ao cristianismo.
Na sequência do desmembramento do Império Romano, muçulmanos otomanos ou bárbaros judaizados, ou uma fusão entre as duas (das inúmeras) tribos chegadas ao cosmopolitismo, a primeira actividade destes novos migrantes foi a de literalmente fabricarem dinheiro (2). O conceito de dinheiro na época é o de um metal precioso que era preciso desenterrar, fundir e cunhar em moedas – e é do poderio adquirido por estes artesãos que se apura o termo “Judeu”, e não tanto da mitologia bíblica oriunda do Médio Oriente. A criação da República de Veneza (3) desenvolveu extraordinaria- mente o comércio, antes feito por terra, através do domínio marítimo pela construção da mais importante frota de navios na época.
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Cerca do ano 1250 os Judeus não eram autorizados pelo Ducado a exercer a sua actividade na maior parte da cidade, e assim foram relegados para a ilha chamada Spinalunga, a qual viria mais tarde a ser conhecida por Giudecca (o “sestieri di Giudei”). Em meados do século XV já existiam cerca de 2.500 judeus em Veneza, vistos como uma fonte de rendimento e progresso, porque tanto poderiam emprestar dinheiro como adiantamento cobrando um juro, como pagavam impostos por exercerem o comércio em permanência dentro dos burgos (em Portugal esse imposto chamou-se o “arabiado”). Em 1492 Veneza sofre novo afluxo de imigrantes a partir da expulsão dos pagãos não convertidos, mouros e judeus, da Espanha e Portugal pelos reis católicos. Os recém chegados sefarditas da península ibérica, de novo “judeus” pelo regresso alojaram-se no Getto Nuovo enquanto os “asquenazes” (a palavra significa “alemães” no dialecto yidish) e oriundos do Levante permaneceram no Getto Vecchio.Estudos sobre a literatura inglesa demonstram que a maioria das peças de Shakespeare, já eram bem mais antigas escritas por autores desconhecidos (4). Por essa altura, a par com a epidemia de peste, o negócio monetário já tinha alastrado a todo o continente e, por via dos constantes dramas causados pelo endividamento, grassava um enorme vaga de anti-semitismo (leia-se anti-judeus) por toda a Europa. No drama ficcionado no “Mercador de Veneza” (1597) Shylock é um agiota judeu que empresta dinheiro a um mercador rival cristão, António, aceitando deste como penhor da promessa de pagamento o mesmo valor da moeda emprestada extraído da carne de António. Para agravar a desonra e a vingança pela dívida, a filha do judeu usurário, Jessica, rouba-lhe dinheiro e jóias e converte-se ao cristinianismo pelo casamento com Lorenzo, um amigo de António. A prática da usura foi a causa que produziu leis que confinavam os judeus ao isolamento no Gueto – enquanto do lado de fora aos cristãos lhes era vedada essa prática por o lucro extraído pela usura ser considerado um pecado.
dobrado em brasileiro
Na sequência de casos de corrupção exercidos sobre os Juizes do Ducado, Shylock e outros banqueiros judeus são excomungados
(gravura de época)
créditos* Nobres muçulmanos em Veneza - pormenor do "Martirio de San Marcos", Vittore Belliniano, Galleria dell'Accademia di Venezia (ligações)
* “Empires of the Silk Road: A History of Central Eurasia from the Bronze Age to the Present” Christopher I. Beckwith (recensão)
* "Germanorum", Gaio Cornelio Tacito (bibliografia)
* (1) O único manuscrito oriundo da Germania só veio a ser casualmente encontrado no século XVI no Mosteiro de Hersfeld (fonte)
* (2) Joseph Shatzmiller, "Shylock Reconsidered: Jews, Moneylending, and Medieval Society"
* (3) "História da República de Veneza" (wikipedia)
* (4) O Otelo de Shakespeare foi plagiado da novela do italiano Giraldo Cinthi publicada em 1584 (recensão)
* "A Tragédia de Otelo, o Mouro de Veneza", William Shakespeare, Ediç. Relógio d`Água (livro)
* "A Ascenção do Dinheiro", Niall Ferguson, Edit. Civilização, 2008
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6 comentários:
Belo post este,aconselho uns links sobre a historia do imperio bancário da familia(azkenazim)Rothschild no post a guerra secreta em senhoresdomundo.blogspot.com
calma
este é o primeiro episódio
antes da banca alemã, ainda faltam os Médicis de Florença
Este "post" é para guardar e divulgar...
Nota 20.
boas, ora aqui está uma excelente entrada,como já referiram, é para guardar e divulgar.
ab e bom trabalho
Bom post, sem dúvida. Eu já li a quase totalidade da peça onde surge Shylock.
Estou curioso em ver a continuação.
Mas que bela posta!
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