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quarta-feira, junho 04, 2014

Feira do Livro (II)

"a Mulher com o Vestido de Penas", in "o Harém e o Ocidente" de Fátima Mernissi, Edições Asa

Os olhos são a grande porta de entrada da alma”, escreveu Ibn Hazm: “perscrutam os seus segredos, revelando os seus pensamentos mais íntimos”. Por isso a boa táctica para uma mulher era baixar o olhar, para que os homens nunca pudessem ler os seus pensamentos. Assim, a chamada modéstia das mulheres árabes é na realidade uma táctica de guerra”. No conto de Xerazade “A Mulher com o Vestido de Penas”, a heroína, usando a tradição de transmissão oral escapa à censura dos fundamentalistas, introduzindo-lhe distorções heréticas.

A história de Hassan começa em Bagdade, então capital do Império muçulmano, onde esse rapaz bonito mas arruinado, que esbanjara a fortuna em vinho e companhias galantes, se prepara para partir para ilhas remotas para tentar refazer a fortuna. Numa noite em que contemplava o mar do alto do terraço, foi atraído pelos graciosos movimentos de um grande pássaro que pousara na praia. De repente o pássaro desfez-se do que era na realidade um vestido de penas, e do interior saiu uma bela mulher nua que correu a nadar nas ondas. “… Em beleza ela ultrapassava todos os seres humanos. A sua boca era mágica como o selo de Salomão e o seu cabelo era mais negro que a noite… os seus lábios eram como corais e os dentes uma fieira de pérolas… o ventre era cheio de pregas… tinha coxas grandes e opulentas, como colunas de mármore”. Mas o que mais atraiu Hassan al-Basri foi o que a bela mulher nua tinha entre as coxas: “uma magnifica cúpula suspensa sobre colunas, semelhante a uma taça de prata ou de cristal”. Louco de amor, Hassan roubou o vestido de penas da bela nadadora e enterrou-o num lugar secreto. Privada das asas, a mulher ficou em seu poder. Hassan casou com ela, cobriu-a de sedas e pedras preciosas, e quando tinham já dois filhos desleixou a sua devoção atenta pensando que ela não voltaria a ter vontade de voar. Retomou as longas viagens para aumentar a fortuna, e ficou surpreendido quando um dia ao regressar descobriu que ela nunca desistira de procurar o vestido de penas e não hesitara em voar para longe logo que o encontrou. “Apertando os filhos contra o peito, envolveu-se no vestido de penas e transformou-se em pássaro, pela graça de Alá, o detentor do poder e da majestade. Em seguida, movimentando-se com graciosidade, ensaiou alguns passos ondulantes, dançou e pavoneou-se e bateu as asas…”, voando sobre rios profundos e oceanos turbulentos até regressar a Wak Wak, a ilha onde nascera. Contudo, antes de partir deixou uma mensagem para Hassan: ele poderia ir ter com ela se tivesse coragem para o fazer. Mas ao tempo ninguém sabia, e hoje em dia ainda menos, onde situar essa misteriosa ilha de Wak Wak, terra de exotismo e estranheza longínqua.

Marco Polo descreveu a ilha como o país das Amazonas que reinavam em Socrotá; Luis de Camões andou por perto da “Ilha dos Amores”, historiadores árabes como Massoud negaram-se a descrever um final infeliz, assim Hassan navegou por anos à procura da sua mulher alada e consegue encontrá-la junto com os filhos, trazendo-a de volta a Bagdade onde viveram felizes para sempre. A lenda serviu de exemplo aos homens muçulmanos, que construíram belos recintos amuralhados onde mantinham as mulheres prisioneiras dentro de “haréns”, prisões disfarçadas de palácios com belos jardins interiores e a felicidade ali à mão de homens desesperadamente frágeis. Os homens ocidentais também teriam construído haréns se considerassem as mulheres como uma força de beleza incontornável, se as imaginassem com asas

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