Junto com “Letters From IwoJima” (2006) exibidos esta semana na Cinemateca no âmbito do ciclo dedicado a Clint Eastwood e como contraponto à estreia de “Gran Torino” (2008), uma obra (ler recensão) sobre o racismo, previsivelmente apenas visto pelo sórdido panorama interno. No entanto, que pior forma de racismo existe que inventar inimigos, os que são “diferentes”, para cumprir objectivos de dominação sobre o Outro?
“Todas as guerras são guerras civis, porque todos os homens são irmãos”
François Fénelon
“Flags...” é a desconstrução do mito do heroísmo face à crueza lancinante da guerra. “O que fiz foi apenas tentar salvar o coiro, e vi fazer coisas que, sinceramente, em nada dignificam a espécie humana” diz um dos sobreviventes do grupo de soldados que no dia 23 de Fevereiro de 1945 precederam a ideia da pose para a icónica fotografia da bandeira içada no alto do Monte Suribachi,
na ilha japonesa de IwoTo, (hoje uma base militar yankee) perdida no Pacífico a meio caminho entre Saipan e Hiroshima/Nagasaki. Um longo caminho percorrido que tinha começado por uma mentira: a False Flag Operation de Pearl Harbour. A justeza do sacrifício em nome da defesa da pátria esgota-se na medida em que em IwoJima se tratava de mais um acto de conquista. A chegada dias depois do Almirante Forrester acompanhado do fotógrafo Joe Rosenthal (por sinal um judeu, envolvido na guerra que haveria de levar a sua etnia à vitória) e da fanfarronada da encenação de novo içar de bandeira, culminou o processo de devastação dos impulsos nacionalistas para chamar aos combatentes “heróis”.
Aliás, o departamento artístico da guerra de propaganda norte americana tinha estudado bem a lição – a foto de IwoJima foi cuidadosamente representada e reproduzida de uma escultura do modernismo italiano (década de 1920) que ainda se encontra exposta no Galeria Nacional de Arte Moderna na Villa Borghese em Roma. Claro que nada disto se aprende no filme de Eastwood. A obra vale apenas pelas pistas que sugere e pela liberdade de interpretação que deixa ao espectador. A ideia que o realizador nos “quis dizer algo de realmente grandioso” acima dos efeitos imediatos da luta dos políticos em nome dos interesses de grupos organizados desaparece num ápice, quando nos apercebemos que a “Malpaso” (a empresa de Eastwood) funciona no âmbito da Warner/CenturyFox e que o filme foi produzido por Steven Spielberg, um dos milionários made-in- Madoff que ainda não se matou, mas que há décadas anda por aí a matar a verdade.
“Naquele momento, a máquina fotográfica de Joe Rosenthal gravou a Alma da Nação” titulavam as parangonas de todos os jornais. Embora fosse uma história de plástico obteve os resultados previstos. A fotografia foi emoldurada às centenas de milhar e objecto de comícios, tours e exposições em barraquinhas de feiras regionais por todo o país, com o objectivo de angariar fundos para financiar a guerra.
A réplica gigante da foto de IwoJima esculpida em gesso e cartão em Times Square foi visitada por 1 milhão e quatrocentos mil mirones que emocionados acabaram virando voluntários contribuintes extra. Os “bonds” vendidos nas lojas de souvenirs da ainda presumível Vitória (a 7ª campanha de angariação de fundos) rendeu no ano de 1945 a soma de $24 biliões de dólares. Para perspectivar o que isto significou é preciso comparar esta verba com o orçamento geral do Estado que em 1946 foi de US$56 biliões. Esta campanha foi a maior operação de venda de créditos públicos sobre Fundos do Tesouro da história dos Estados Unidos.
Claro que a relação do circo financeiro com a verdade dos factos tem tanto a ver com o cu como este tem a ver com as cuecas da judia Zsa Zsa Gabor. Depois de neutralizadas as primeiras linhas do inimigo após o desembarque, um numeroso grupo de soldados conseguiu trepar ao cimo do Monte Suribachi, passando ao lado dos mais de 20 mil soldados japoneses entrincheirados em túneis e galerias. Desse grupo conhecem-se os nomes de Hank Hansen, Boots Thomas, John Bradley, Phil Ward, Jim Michaels, Chuck Lindberg, Michael Strank, Rene Gagnon, Ira Hayes, Franklin Sousley, John Bradley, Harlon Block e alguns mais que estes, o que gerou forte controvérsia sobre os “heróis” que estavam e os que não estiveram.
Muitos dos presentes morreram em combate imediatamente a seguir. A operação que o quartel general tinha previsto efectuar em três dias durou 40 sangrentos dias, causando 27 mil vítimas, 7 mil das quais marines yankees. Como se disse, três deles, dos 6 que participaram na reconstituição (Bradley, Hayes e Gagnon) foram contratados à força para servir como crentes propagandistas da fé no sonho americano, exibidos ao som de fanfarras e aplausos em estádios de basebol ao jeito de Bronco Billy. Mas eles sabiam que era mentira, dois suportaram o fardo dos reality shows, outro não – esse, o caso mais deprimente, foi o do cabo Ira Hayes (segregado pela sociedade e pela hierarquia militar dos senhores da guerra, por ser de etnia índia) que rejeitou a fama, se converteu num alcoólico compulsivo e morreu poucos anos depois como um vulgar sem-abrigo. Foi imortalizado (o Racismo) por Johnny Cash na “Balada por Ira Hayes”: “yeah, chamem-lhe bêbado, que o fantasma já não vos responde (…)” diz a letra,
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Uma simples mistificação dos economistas da escola neoliberal norte-americana, fazendo tábua rasa da distinção entre o Valor de Uso e o Valor de Troca das mercadorias de Karl Marx em “O Capital” moldou o mundo do pós-guerra tal e qual o conhecemos. Neste sentido, só o Presente é nosso, não o momento passado nem aquele que aguardamos, porque um está destruido, e do outro, se não lutarmos, não sabemos se existirá.
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