“Está a renascer uma Classe Servil que a industrialização, depois da Segunda Guerra mundial havia abolido”
André Gorz
Sobre o artigo de Nekame Jurado, “Europa: desde o Estado de Bem-Estar até à Segurança do Estado" – e a propósito das greves em França e na Alemanha.
Os direitos sócio-económicos e o Estado de Bem Estar são dois conceitos que estão ligados, porém recorda-se que o Modelo Social Europeu resultou das fortes lutas de classe que possibilitaram a conquista dos direitos sociais consignados até agora nas Constituções nacionais europeias.
A segunda Revolução Industrial (a partir de 1850) trouxe uma mudança total na estrutura demográfica (crescimento explosivo das grandes urbes) assim como na estrutura das classes sociais (por via das reformas sobre a propriedade das terras comunitárias ou latifundiárias, onde a maioria da população nos paises industrializados na época não possuia outro recurso para sobreviver que a sua força de trabalho). A primeira grande crise económica em 1875 deixaria a descoberto a crueza do modelo industrial que se estava a desenvolver. As teorias de Marx e Engels, a forte conciência de classe e as condições sociais e laborais de miséria foram os detonadores das grandes lutas pela perseguição da garantia pública do direito a rendimentos alternativos aos parcos salários do trabalho (pensões por incapacidade, velhice, segurança contra o desemprego) ao acesso a condições de habitação dignas (casas sociais a custos controlados de aluguer), ao saneamento básico, saúde e educação, entre outros.
O primeiro seguro social (da época moderna, já que a antiga Babilónia – onde hoje se situa o Iraque – e o Egipto dos faraós os haviam criado) nasceu na Alemanha em 1883, depois de uma longa greve geral, durante o mandato de Bismark, mas apenas foi atribuido aos trabalhadores activos. Esta primeira onda alastrou célere aos outros paises industrializados. Em 1919, depois do Tratado de Versalhes, nasceu a OIT (Organização Internacional do Trabalho), cujo objectivo era a coordenação do desenvolvimento dos direitos sociais. A década de 1930 iniciou-se com a Grande Depressão económica desencadeada a partir de 1929 quando as taxas de juro chegaram aos 30 por cento!, as revoltas sociais e operárias eram constantes, reinvindicando rendimentos mínimos cobertos pelos Estados para as situações de mais graves necessidades. Os movimentos socialistas estavam no auge, propiciados tanto pela situação económica, como pelo desenvolvimento da Revolução Popular na URSS. Inclusivamente os movimentos fascistas na Alemanha e Itália mascaravam as suas verdadeiras intenções com promessas de “pleno emprego” e “segurança social” para todos.
Neste contexto de consciencialização politica e de luta de classes, a Segunda Grande Guerra Mundial marca uma linha de partida para o desenvolvimento do Estado de Bem Estar. Foi o Exército Vermelho que, entrando pelas fronteiras alemãs o trouxe enquanto expandia o seu próprio poder. Perante o avanço inexorável da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), os poderes factuais europeus perceberam que a única saída para refrear este avanço numa Europa de trabalhadores favoráveis ao pensamento socialista era fazer um pacto de segurança social e de desenvolvimento do que logo foi chamado de Estado de Bem Estar. Perante esse avanço, o próprio presidente dos Estados Unidos, Harry Truman, num discurso de 1947, afirmava que “o expansionismo comunista como o principal perigo e inimigo dos EUA e do Mundo ocidental (...) obriga às negociações sociais”
Como têm afirmado prestigiados historiadores (como p.e. Howard Zinn), a ameaça militar que a União Soviética fez pesar sobre a Europa ocidental pode ter sido sobrestimada, porém nesse momento o modelo económico e politico não estava desacreditado, longe disso, constituiu um desafio sem o qual possivelmente não se teria desenvolvido o Estado de Bem Estar europeu tal como o temos conhecido até aqui. Esta situação levou os governantes da Europa ocidental a aceitar um pacto social e de rendimentos sem precedentes: foi assim que nasceu o “modelo europeu”, porém esse pacto não se verificou em paises que estavam debaixo de ditaduras fascistas de preponderância militar, como era o caso de Portugal, Espanha e Grécia (que apenas adoptaram medidas sociais parciais e desconexas). Nesse pacto social, referente à gestão global da economia, o Estado substituia o Mercado, sabido que esse mercado nunca poderia de forma automática solucionar o problema do pleno emprego que constituia a base, o primeiro pilar do pacto. O segundo pilar foi a assumpção por parte desse mesmo Estado, com todas as suas consequências, daquilo que até então tinha sido abandonado ao mundo dos valores: a protecção social. O direito à assistência e à protecção dos indivíduos excluidos passou a ser uma obrigação do Estado e não de uma qualquer obra de caridade solidária. O terceiro pilar foi o aprofundamento da democracia activa.
O Estado assistencial deu passos para o Estado de Bem Estar, um Estado de trabalhadores onde o direito de participação no produto social não deriva das “boas intenções” daqueles que têm, nem do Estado que garante as necessidades mínimas, mas da contribuição dos trabalhadores e da riqueza colectiva. Assim, o direito à participação social converte-se num direito ao trabalho; na medida em que ninguém pode ser excluído de participar, como ninguém pode estar excluído do trabalho socialmente reconhecido. O Pacto Social Europeu teve os seus principais pontos de desenvolvimento nas seguintes datas:
- Conferência Internacional de Filadélfia (1944) como resultado dos esforços de Churchill e Roosevelt. Determinou um protótipo de modelo internacional de Segurança Social.
- Em 1949 a União Europeia (ocidental) adopta um convénio de Segurança Social para harmonizar os tratados bilaterais dos paises membros.
- Em 1957 a partir do Tratado de Roma cria-se o Mercado Comum, reconhecendo as bases dos direitos sociais europeus, porém sem que tenha criado qualquer instrumento coercivo para conseguir harmonizar as legislações dos paises membros.
- Em 1964 o Conselho da Europa inicia os trabalhos de harmonização com a OIT conseguindo avanços sensiveis através do Convénio 102.
Até aqui perfilaram-se as bases politicas que decidiram o Modelo Social, mas para entender o momento actual é importante analisar as bases económicas que o tornaram possivel. A Segunda Grande Guerra não só trouxe uma importante transformação nas relações sócio-politicas, mas também uma grande transformação económica. A guerra destruiu os velhos aparelhos produtivos europeus (1), apresentando de imediato a necessidade de uma nova estrutura produtiva baseada nos novos modos de produção industrial fordista. A guerra tinha constituido um imenso campo de experimentação de engenhos tecnológicos aplicados aos fins militares que mais tarde foram adaptados para actividades de produção civil, as quais serviram de trampolim para a fulgurante carreira tecnológica das décadas posteriores, que trouxeram fortes reduções de custos, ampliação de escala de produção, forte aumento de produtividade e por fim beneficios empresariais. Para além do mais, devido à espionagem de guerra (que prosseguiu em época de paz) as tecnologias de ponta não foram património exclusivo de um sector ou país. Estados Unidos, Alemanha, França, Reino Unido, Itália e o Japão puderam começar a aplicá-las quase em simultâneo, dando origem a uma competividade antes desconhecida (embora todos pagassem direitos ao primeiro, a maior potência industrial, económica e tecnológica, que não tinha ficado destruída)
Foi a partir desta nova situação que se desenvolvem as teorias económicas de Lord John Maynard Keynes que, ainda que se situem dentro do modelo económico capitalista imperante, se separam claramente das teorias clássicas e neoliberais hoje em aplicação. Keynes defendia que era ao Estado que competia a responsabilidade de manter um nivel adequado da procura interna. Neste sentido, se os cidadãos por si mesmo (por via do desemprego) não podiam consumir, o Estado devia gastar por eles, com investimentos em educação, saúde, infraestruturas sociais, etc, para além de transferir directamente para os cidadãos de menores possibilidades os recursos monetários necessários para garantir a paz social (pensões, fundos de desemprego, rendimento mínimo garantido). Desta forma, com esta politica económica se mantinha um nivel de procura adequado para que a produção das empresas pudesse ser absorvida e continuassem a produzir. Definitivamente, o keynesianismo baseava-se numa politica de pacto social entre o pleno emprego e a procura como motor económico. Para que haja consumo é necessário que as famílias tenham rendimentos minimamente capazes, comprometendo-se o próprio Estado a manter a procura dos chamados bens públicos.
Designado como delegado britânico à Conferência de Bretton Woods em 1944 (onde foram criados o FMI e o Banco Mundial), Lord Keynes opôs-se rotundamente às pretensões dos Estados Unidos que pretendia impôr à Europa uma estreita dependência financeira, numa espécie de “protectorado”. Curiosamente (para quem não tem possibilidades de ser mosca nas altas instâncias da banca e dos governos), essas pretensões dos Estados Unidos não se distanciaram muito daquilo que mais tarde ficaria consignado no Tratado de Maastricht. Keynes tinha logrado impôr-se às intenções dos EUA, por um lado devido à dominação económica americana estar ainda na sua fase emergente, e por outro, pela ameaça real ao alastramento (com prejuizos para os capitalistas ocidentais) das conquistas sociais na URSS. Ainda que o modelo europeu então desenhado fosse inaceitável para os EUA, cujo ideal sempre tem sido o “laisser faire” económico e a mínima intervenção do Estado, teve que se conformar e conter-se,,, até à queda da URSS.
Porquê se mostrava o Tratado de Maastricht tão preocupado com os “défices excessivos”, e se mantém como dogma económico esta preocupação? A alínea dos “défices excessivos” é elevada a “principio económico máximo” pelo Consenso de Washington em 1990, que o liga ao “tamanho excessivo dos governos”.
Durante o período que se seguiu à II GGuerra e até 1973 (à crise petrolifera e ao abandono do padrão-ouro face ao dólar por decisão unilateral dos EUA), na Europa todas as variáveis económicas tiveram em todos os paises industrializados incrementos muito superiores aos obtidos em qualquer outro periodo anterior, por exemplo, a produtividade cresceu em média, ao longo do periodo 1950-1970 em 4,5 por cento acumulativos em cada ano (face aos 1,6 por cento no periodo expansivo anterior precedente de 1870-1913). Este incremento de produtividade pôde absorver sem grandes fricções os custos supostamente requeridos pela implantação do Estado de Bem Estar Social. Depois da crise de 1973 o capitalismo neoliberal, cujo ponto de partida foi o Consenso de Washington, começou a pôr em causa o pacto social do modelo europeu, impondo uma maior valorização ao Mercado do que aos valores Públicos destinados a garantir os direitos sociais adquiridos. A destruição da URSS, condenada pela acção directa das politicas monetárias globais implementadas por Reagan e Tatcher, e a desaparição da Guerra Fria entre os dois blocos antagónicos, propiciou que em Maastricht fossem concertados os pilares para a abolição do dito Estado Social – que obstava ao livre desenvolvimento imperialista da única superpotência agora existente.
(1) Mercado Livre?: a Grã Bretanha, destruída pela guerra, face á crise financeira despoletada em 1947 foi obrigada a pedir um empréstimo (“Lend Lease”) de 3,75 mil milhões de libras à banca privada com juros elevadíssimos, destinado a apoiar a reconstrução e a reabertura ao comércio das colónias, impondo por outro lado restrições alfandegárias a todas as importações provenientes de paises fora da “Commonwealth”
a Abolição do Estado Social II - continuação aqui
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