“Lê os melhores livros primeiro, porque poderás não ter oportunidade de os ler mais tarde”
Henry David Thoreau (1817-1862)
O realizador brasileiro Fernando Meirelles acabou de rodar a adaptação ao cinema da obra-prima de José Saramago “Ensaio sobre a Cegueira” cujo conteúdo, como se sabe, trata de expor a responsabilidade de quem vê coisas num mundo em que todos ficaram cegos. O livro de 1995, decisivo para a atribuição do Nóbel em 1998, trata duma “inexplicável epidemia de cegueira que gera um caos generalizado e revela o lado mais primitivo do ser humano". Como aviso aos nerds hipnotizados pelas imagens, que fora dos cinemas usam óculos escuros, ou cujo gene da miopia apenas os deixam ver alternadamente ora do olho esquerdo ora do olho direito, aconselha-se vivamente que leiam o livro antes de ver o filme que, em fase de montagem, só estreia lá para meados de 2008.
Entretanto, para abrir o apetite, Meirelles (A Cidade de Deus e O Jardineiro Fiel) descreve a sua experiência nesta realização num blogue que é uma delícia para todos os cinéfilos – desde o primeiro encontro com Saramago no "Farta Brutos" até como Garcia Bernal encontrou a fórmula perfeita para interpretar “o Malvado”, passando pela aprendizagem de dirigir uma multidão de figurantes cegos num velho bairro de Montevideo. (cujo resumo se transcreve aqui). Quatro ruas de uma parte decadente do antigo bairro financeiro recuperaram o seu brilho, praticamente transformadas num set de hollywood. As fachadas de várias casas foram totalmente reconstruidas e transformadas em discotecas e lojas, a maioria das quais serão depois saqueadas pelas personagens do filme, os cerca de 300 figurantes que interpretam a multidão de cegos. As cenas do asilo foram filmadas num velho edificio de Toronto e as últimas cenas de rua em São Paulo.
do Livro dos Conselhos. - “se podes olhar vê, se podes ver repara”
Muitas vezes comparado com “A Peste”, de Albert Camus (que trata do episódio pouco conhecido da aniquilação pelos Nazis da pequena vila francesa Oradour-sur-Glane durante a segunda grande guerra. Não confundir com a mistificação “holocáustica” para efeito da propaganda judaica) o romance começa com um homem no seu carro no meio do trânsito, à espera que o sinal verde abra, quando percebe que, inexplicavelmente, ficou cego. Um estranho, fingindo boas intenções, oferece-se para levá-lo para casa, mas acaba por lhe roubar o carro. Quando consegue chegar a casa, a mulher leva-o de táxi para uma clínica. Naquele mesmo dia o ladrão, o taxista, a mulher, o oftalmologista e todos os pacientes da clínica sucumbem a uma epidemia de cegueira que alastra como um rastilho de pólvora, uma cegueira colectiva. À medida em que a praga alastra, as vítimas são mandadas para um hospício abandonado, onde são vigiadas por soldados com autorização para atirar sobre quem se tenta escapar da quarentena. Apenas a mulher do médico permanece sã e, sendo a única que consegue ver, tenta proteger os cegos “decentes” do caos que se instaura, marcado pela falta de meios de subsistência vitais, energia, comida e medicamentos, quando a cegueira tudo paraliza, provocando a ruptura com qualquer convenção social.
Saramago desenhou o retrato da sociedade actual: o sectarismo (o isolamento dos cegos num manicómio), a violência gratuita (os disparos sobre os cegos), o cinismo e a falsidade dos políticos (medidas tomadas para tentar debelar a epidemia de cegueira), o egoísmo (cada cego por si), a porcaria que inunda a cidade (o caos de toda uma sociedade que se autodenomina civilizada) etc.
Como no “Evangelho Segundo Jesus Cristo”, que celebrizou os trauliteiros do Estado português quando o censuraram, o ambiente é o mesmo: um mundo onde abunda a miséria, o mau cheiro e a porcaria, que e ao fim e ao cabo, é a nossa realidade. Agora como há dois mil anos, a merda é a mesma: andamos todos cegos, embebedados (e logo de seguida multados) pelos vendilhões do templo; mas só reparamos naquilo que nos interessa. Sem dúvida, esta continua a ser uma imagem aterradora e comovente (cada homem por si, ou a sociedade como um todo rachados ao meio como se fossem um tronco de que só se aproveita metade), uma visão kafkiana dos tempos sombrios que nos coube em sorte viver.
O desafio de filmar uma obra tão complexa é que Fernando Meirelles, segundo nos vai contando, “tentou agarrar” a filosofia do livro onde cada leitor vive uma história como se fosse uma das personagens – e põe a câmara a calcorrear os mesmos caminhos de cada um dos afectados. Num ponto onde se cruzam literatura e sabedoria, Saramago obrigava-nos a parar, fechar os olhos e ver, interiorizando uma experiência única – aqui sugere-se que a captação das imagens é feita pela medida de cada olhar do espectador. Recuperar a lucidez, resgatar o afecto: essas são as tarefas do escritor e de cada leitor/espectador, face à pressão dos tempos e ao que se perdeu. “Uma coisa que não tem nome, e essa coisa é o que somos”, dizia o autor a uma certa altura.
Em 1997 Meirelles tentou comprar os direitos de "Ensaio sobre a Cegueira". Saramago porém declinou o convite, alegando que não fazia sentido transformar em imagens uma história sobre a cegueira. Dois anos depois, no entanto, o autor português aceitou vender os direitos à produtora canadiana Rhombus Media que, não por acaso, foi à procura do premiado realizador brasileiro para assumir a direcção de “Blindness” - título do romance em inglês que já vendeu um milhão de cópias nos Estados Unidos (o que não é nada fácil numa sociedade elitista e segregadora de novas mensagens culturais vindas de estrangeiros). O filme, com um orçamento de US$ 20 milhões de dólares, falado em inglês, é uma co-produção entre o Brasil, Canadá, Reino Unido e Japão e conta, para além do actor-activista Danny Glover, com um cast multiétnico: Julianne Moore, Mark Ruffalo, o mexicano Gael García Bernal, os brasileiros Plinio Soares, Alice Braga e Antonio Abujamra e os japoneses Yoshino Kimura e Yasuke Iseya. O produtor canadiano Niv Fichman, conta que Saramago se entusiasmou justamente pela idéia de uma co-produção internacional, sem uma “voz dominante”, além da promessa de que o filme não cairia nas mãos de um grande estúdio de Hollywood
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