
Não por acaso, o primeiro encontro de Biberkopf ao sair da cadeia é com um judeu tradicionalista, um personagem nada gratuito num país ocupado por imigrantes semitas vindos do leste que ocupavam o espaço público a todos os niveis: comercial, industrial e financeiro, cultural – todos os despojos sobrantes do 2º Reich do Kaiser derrotado estavam quase exclusivamente nas mãos da comunidade judaica, na Berlim (tal como na Nova Iorque) dos anos 20 e 30, no limiar da “Era da Técnica”, em vésperas da Alemanha enveredar pelo nazismo. Hitler, eleito pela democracia, pela inoperância capitalista social democrata da “República de Weimar” (os ricos cada vez mais ricos, os pobres cada vez mais pobres) será a resposta às condições degradadas do povo alemão, obrigado a cumprir as imposições vexatórias do Tratado de Versalhes, corolário da vitória europeia na 1ª Grande Guerra das potências fundadas no comércio ultramarino: a França e Inglaterra. Na Alemanha a vida não pára - prossegue ao som da música de Paul Godwin.
Berlin Alexanderplatz é um retrato vibrante da Berlim da classe operária e do submundo da cidade, a história daqueles que não se safam - no crepúsculo duma Alemanha que esteve a um curtíssimo passo de se transformar num Estado Socialista. O filme começa com uma cena comparável a um nascimento, em que o protagonista Biberkopf sai de um mundo isolado, fechado, a prisão de Tegel, para o assim chamado mundo real – onde é preciso lutar duramente pela sobrevivência, recorrendo a todas as possibilidades de truques de vida, a esquemas fantasiosos, ao recurso a humilhantes empregos precários, à prostituição.
De tombo em tombo, cada um para um grau de degradação cada vez mais abjecto, o protagonista acaba por aprender à sua custa e reconhecer que “aquilo que parece ser o destino é, afinal, obra de seres humanos”. Apenas se mantém lúcido em nome de um amor livre, nihilista, que afinal se revelará ser muito caro, condicionado pela impossibilidade de sobrevivência económica: “Fiz hoje um juramento, e tu és minha testemunha: de hoje em diante serei sempre honesto” – Biberkopf , um homem inesquecivel para quem com ele priva, de boa natureza, pacato e terno, quem se mostra passivo é tomado por idiota, modificado pelo meio, voluntarioso, violento e brutal concluirá que “por outro lado sempre se pode amputar uma jura” – este é o título do segundo episódio. (do total de 13 episódios e um Epílogo concebidos como cinema para o pequeno ecran de televisão com o total de 931 minutos filmados (em1980, em versão resmasterizada de 2007 em 35 m/m) como autêntico monumento de homenagem aos primórdios do cinema não comercial).
Rainer Werner Fassbinder na sua magnus opus faz um amargo comentário estético, (muito distante do decorativismo burguês de Visconti), ao futuro do homem que sobreviveu no interior da alma dividida de Franz Biberkopf derrotado pela leitura filosófica do vencido da vida, sem perspectivas, objectivos ou trabalho: a “Internacional” comunista é gradualmente abafada pela canção nazi “Horst Wessel”. Franz Biberkopf decide mostrar ao mundo que ainda não viram o seu melhor – enveredando de novo, para enfrentar a vida, por actividades marginais e criminosas que irão culminar em tragédia, depois de todas as provações está agora preparado para se tornar num fiável e obediente cidadão do futuro Terceiro Reich.
Berlin Alexanderplatz é a poesia em imagens, embora a mensagem amarga não augure nada de bom. Como em “Dov’è la Libertà?” de Rossellini onde se defende a tese de que “o ser humano é incapaz de ser livre, sente a imperiosa necessidade de estar acorrentado, tendo para tanto inventado a existência dos deuses”, de modo a que as leis fossem invioláveis; entregues ao diktat de homens providenciais
Epilogo, Biberkopf no Purgatório
“Stamina Cinema” – significa energia, vigor, capacidade de resistência, perseverança, robustez. O termo mais aproximado em português será “estaminal”, as células com capacidade de se renovar, de se dividir indefinidamente – se existissem preceitos constitucionais para a investigação das várias verdades "Berlin Alexanderplatz" seria o filme orgânico, constitucional.
Permanecerá, em conjunto com o épico histórico “Hitler, Um Filme Sobre a Alemanha” de Hans-Jurgen Syberberg, como a memória da Alemanha sonhada dos pequenos burgos, como Ausburg, pequenas comunidades da Idade Média que para se escaparem das guerras religiosas (no século XXI outra vez tão em moda), evoluiram para o conceito de “Nação” que, fechando a elipse, na modernidade regressa à nação alemã – mas, subsumida no nazismo e na neo-colonização do pós guerra também essa Alemanha já não existe
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