(Por altura da re-exibição da obra-prima de Reiner Werner Fassbinder no âmbito do DocLisboa e da Instalação evocativa no Museu da Electricidade, republica-se este post de 2008, pouco visto na altura, actualizado, cujas transcrições em video no you-tube tinham sido entretanto caçadas pelos "direitos de autor").
Franz Biberkopf é libertado da prisão, para onde foi lançado por um crime que não cometeu, e tem medo da liberdade, e esse é precisamente o título do primeiro episódio: ao adquirir a liberdade “o Castigo Começa”
Não por acaso, o primeiro encontro de Biberkopf ao sair da cadeia é com um judeu tradicionalista, um personagem nada gratuito num país ocupado por imigrantes semitas vindos do leste que ocupavam o espaço público a todos os niveis: comercial, industrial e financeiro, cultural – todos os despojos sobrantes do 2º Reich do Kaiser derrotado estavam quase exclusivamente nas mãos da comunidade judaica, na Berlim (tal como na Nova Iorque) dos anos 20 e 30, no limiar da “Era da Técnica”, em vésperas da Alemanha enveredar pelo nazismo. Hitler, eleito pela democracia, pela inoperância capitalista social democrata da “República de Weimar” (os ricos cada vez mais ricos, os pobres cada vez mais pobres) será a resposta às condições degradadas do povo alemão, obrigado a cumprir as imposições vexatórias do Tratado de Versalhes, corolário da vitória europeia na 1ª Grande Guerra das potências fundadas no comércio ultramarino: a França e Inglaterra. Na Alemanha a vida não pára - prossegue ao som da música de Paul Godwin.
Berlin Alexanderplatz é um retrato vibrante da Berlim da classe operária e do submundo da cidade, a história daqueles que não se safam - no crepúsculo duma Alemanha que esteve a um curtíssimo passo de se transformar num Estado Socialista. O filme começa com uma cena comparável a um nascimento, em que o protagonista Biberkopf sai de um mundo isolado, fechado, a prisão de Tegel, para o assim chamado mundo real – onde é preciso lutar duramente pela sobrevivência, recorrendo a todas as possibilidades de truques de vida, a esquemas fantasiosos, ao recurso a humilhantes empregos precários, à prostituição.
De tombo em tombo, cada um para um grau de degradação cada vez mais abjecto, o protagonista acaba por aprender à sua custa e reconhecer que “aquilo que parece ser o destino é, afinal, obra de seres humanos”. Apenas se mantém lúcido em nome de um amor livre, nihilista, que afinal se revelará ser muito caro, condicionado pela impossibilidade de sobrevivência económica: “Fiz hoje um juramento, e tu és minha testemunha: de hoje em diante serei sempre honesto” – Biberkopf , um homem inesquecivel para quem com ele priva, de boa natureza, pacato e terno, quem se mostra passivo é tomado por idiota, modificado pelo meio, voluntarioso, violento e brutal concluirá que “por outro lado sempre se pode amputar uma jura” – este é o título do segundo episódio. (do total de 13 episódios e um Epílogo concebidos como cinema para o pequeno ecran de televisão com o total de 931 minutos filmados (em1980, em versão resmasterizada de 2007 em 35 m/m) como autêntico monumento de homenagem aos primórdios do cinema não comercial).
Rainer Werner Fassbinder na sua magnus opus faz um amargo comentário estético, (muito distante do decorativismo burguês de Visconti), ao futuro do homem que sobreviveu no interior da alma dividida de Franz Biberkopf derrotado pela leitura filosófica do vencido da vida, sem perspectivas, objectivos ou trabalho: a “Internacional” comunista é gradualmente abafada pela canção nazi “Horst Wessel”. Franz Biberkopf decide mostrar ao mundo que ainda não viram o seu melhor – enveredando de novo, para enfrentar a vida, por actividades marginais e criminosas que irão culminar em tragédia, depois de todas as provações está agora preparado para se tornar num fiável e obediente cidadão do futuro Terceiro Reich.
Berlin Alexanderplatz é a poesia em imagens, embora a mensagem amarga não augure nada de bom. Como em “Dov’è la Libertà?” de Rossellini onde se defende a tese de que “o ser humano é incapaz de ser livre, sente a imperiosa necessidade de estar acorrentado, tendo para tanto inventado a existência dos deuses”, de modo a que as leis fossem invioláveis; entregues ao diktat de homens providenciais
Epilogo, Biberkopf no Purgatório
“Stamina Cinema” – significa energia, vigor, capacidade de resistência, perseverança, robustez. O termo mais aproximado em português será “estaminal”, as células com capacidade de se renovar, de se dividir indefinidamente – se existissem preceitos constitucionais para a investigação das várias verdades "Berlin Alexanderplatz" seria o filme orgânico, constitucional.
Permanecerá, em conjunto com o épico histórico “Hitler, Um Filme Sobre a Alemanha” de Hans-Jurgen Syberberg, como a memória da Alemanha sonhada dos pequenos burgos, como Ausburg, pequenas comunidades da Idade Média que para se escaparem das guerras religiosas (no século XXI outra vez tão em moda), evoluiram para o conceito de “Nação” que, fechando a elipse, na modernidade regressa à nação alemã – mas, subsumida no nazismo e na neo-colonização do pós guerra também essa Alemanha já não existe
.
Uma simples mistificação dos economistas da escola neoliberal norte-americana, fazendo tábua rasa da distinção entre o Valor de Uso e o Valor de Troca das mercadorias de Karl Marx em “O Capital” moldou o mundo do pós-guerra tal e qual o conhecemos. Neste sentido, só o Presente é nosso, não o momento passado nem aquele que aguardamos, porque um está destruido, e do outro, se não lutarmos, não sabemos se existirá.
4 comentários:
Caro xatoo, não sei se era sua intenção, mas dizer que a Alemanha esteve próxima de se tornar um estado Socialista por causa do famigerado Concelho dos Deputados do Povo é hiperbolizar a coisa. O CDP foi, em última análise, uma força reaccionária. Sim, a Alemanha (ou pelo menos Berlim,devido às singularidades socio-políticas do então estado germânico) esteve próxima de ter uma revolução proletária, entre o fim de dezembro de 1918 e o início de janeiro 19. Mas isso aconteceu apesar do CDP. Foi esse Concelho quem traiu o comité executivo provisório dos Sovietes de Operários e Soldados, que havia outorgado o poder executivo de Estado ao CDP (no Congresso Nacional de Sovietes de meados de Dezembro) de boa-fé. Um erro infantil de consequências históricas. Depois disso, foi um festim para a reacção. O cerco aos marinheiros, a depuração das forças policiais e militares de militantes do USPD (depois dos 3 membros do CDP que militavam no USPD resignarem) e por aí fora até aos fuzilamentos de Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht em meados de janeiro.
Embora tenha sido um órgão interessante, a determinada altura, com decisões que beneficiariam a classe trabalhadora, a verdade é que acabou por ser um inimigo da revolução proletária. Pese embora se deva dizer que o movimento revolucionário de Berlim foi muito modesto e moderado, tentando fazer apenas meia-revolução. Donde a tal tirada de Lenine que rezava que "se os alemães fossem fazer uma revolução na estação de comboio, compravam antes os bilhetes para a plataforma".
Já na Baviera, como sabemos, a história foi outra.
Interessa também referir que é aqui, nestas semanas de 1918-19, que vai nascer o histórico ódio dos comunistas alemães ao SPD, que se irá traduzir nas famosas batalhas de rua entre o KPD e o SPD durante os 13 anos seguintes.
obrigado pelo comentário, pegando nas suas palavras, a ideia foi esta: "Sim, a Alemanha (ou pelo menos Berlim,devido às singularidades socio-políticas do então estado germânico) esteve próxima de ter uma revolução proletária" - o modo como ela degenerou veio a seguir. Só pretendi pôr ênfase na corrupta social-democracia fugida da revolução para Weimar em contraste com a possibilidade de revolução em 1918/19. Por alguma razão o regime que veio a seguir à queda da DDR se apressou a apear a estátua do Liebknecht do pedestal existente na praça de Potsdam.
http://xatoo.blogspot.pt/2006/10/first-we-take-manhattan-then-we-take.html
e mais aqui:
http://xatoo.blogspot.pt/2006/10/histria-da-praa-de-potsdam.html
Ah claro, daí serem social-democratas e não revolucionários. Quando os trabalhadores entregam o poder à social-democracia em vez de o tomar pela força, o fim é sempre este. No PREC português não foi assim tão diferente disto.
A revolução alemã é um dos temas que mais me interessa. Acho importante analisar o caso de um país que era a chave para a revolução internacional (o socialismo na Alemanha tinha sido o socialismo na Europa), com um proletariado avançado e organizado (mais de 6 milhões de operários sindicalizados) e que, no fim, redundou na ditadura mais terrorista da história do capitalismo contemporâneo. Além de que é ocultada sucessivamente pelas narrativas da "esquerda" pós-estalinista.
Saúde.
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