Com o filme escolhido para a inauguração do evento, “a Praça”, voltamos aos tempos em que as boas-almas funcionárias da censura prévia engendravam títulos completamente idiotas para que não fosse desviada, muito menos corrompida, a boa moral do simplório espectador. O filme chama-se “Maidan” e o tema é a revolta de grupos organizados, pagos pelo Ocidente, actuando na praça da Independência na capital da Ucrânia tendo como objectivo derrubar um presidente eleito democraticamente pelo voto de 44 milhões de ucranianos.
Mas não é isto que a “Praça” mostra. De velha prática comum, a passagem do titulo real do acontecimento ao estado gasoso apela sem um pingo de vergonha na cara à ignorância do espectador. Em nome da “democracia europeia e norte americana” manifestantes “We Love UÉ” e “We Love US” de coraçãozinho a dar-a-dar agitam estandartes e fazem uma barulheira do catano com som off sobreposto à gravação. É uma encomenda. E são duas exaustivas horas bem medidas disto, monocórdicas, trauliteiros que vagueiam entre o arrancar de pedras do chão e o enfrentamento das forças de segurança cuja atitude é completamente passiva, para que a integridade do cidadão não seja molestada.
Há um super-palco à maneira dos concertos rock para massas pagantes, que aqui não pagam, painéis audiovisuais gigantes, coloridos raios laser, apelos disléxicos à pátria contra os bandidos que governam, aparelhagens acústicas sofisticadas, cantatas que usam o “Bella-Ciao” adulterado com letras foleiras contra o usurpador russo. Um terço dos ucranianos fala russo e a memória dos reaccionários cossacos está bem viva. De quando em vez sobe ao palco um gang de padres trajando a rigor de negro, cruz de ouro ao peito, que recitam mega-missas apelando à paz. Filhos da Puta. Aparecem armas e balas mas o filme não as mostra. Policias são atingidos, há feridos e mortos. Fosse no Ocidente e onde é que os “revoltosos” já estariam, ou com um governo a sério que zelasse pela ordem. Nem por uma vez o bem remunerado realizador mostra uma única opinião do contraditório. O outro não existe. Pronto, missão cumprida, temos um governo de energúmenos nazi-fascistas pró-Ocidental instalado na Ucrânia.
Os infelizes programadores doDocLisboa (deste e dos outros anteriores) bem que avisaram logo na panegírica homilia de apresentação da coisa: neste momento há activistas presos na usurpada Crimeia por andarem a dar milho aos pombos, desafiando o jugo da tenebrosa Rússia. Crimeia “ocupada” por vontade do voto democrático da maioria que não aceita ser governada por nazi-fascistas. Por Vladimir Putin, cujo governo merece a aprovação de 80% dos 142 milhões de russos. Lido nas entrelinhas porque os sacanas não o disseram deste jeito. Confortavelmente instalados na alcatifa vermelha do mecenato da Caixa Geral de Depósitos (uma instituição pública) da Câmara Municipal de Lisboa (outra que tal), da EDP, e as mais que pinguem, os tipos do DocLisboa suam as estopinhas, mesmo com o pestilento ar condicionado, para irradicar da face da terra as suas ferozes ditaduras de estimação. Coitados dos tenrinhos tugas que esgotaram a sala, foram avisados de cima do palco: têm pela frente a épica tarefa de exportar, contornando a sanção aplicada à pêra-rocha, em vez dela a nossa democracia, não só para a Rússia, mas para os habitués povos oprimidos da República Popular da China, para as dissidentes repúblicas populares de Donetz e Lugansk, enfim, derrubar os ferozes islamistas do Irão. Sic. Foi mesmo isto que ali se disse. Peanuts ou pipocas como mastigam evadidos no éter os obamaníacos cá do sitio, afinal são apenas 1,64 milhões de criaturas. Força almas jovens portuguesas em idade escolar (sem escola). Vão na conversa destes esquizofrénicos alarves e não tardará muito que, em defesa do sub-Imperialismo da Alemanha, estejam envolvidos num conflito mundial em grande escala. Afinal é o que dá lucro aos que mandam, né?
Uma simples mistificação dos economistas da escola neoliberal norte-americana, fazendo tábua rasa da distinção entre o Valor de Uso e o Valor de Troca das mercadorias de Karl Marx em “O Capital” moldou o mundo do pós-guerra tal e qual o conhecemos. Neste sentido, só o Presente é nosso, não o momento passado nem aquele que aguardamos, porque um está destruido, e do outro, se não lutarmos, não sabemos se existirá.
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